Só Nunes Marques votou contra ação apresentada por partidos de oposição em 2020. Julgamento iniciado em 6/10 terminou na quinta (3). Decisão deve ser cumprida em até 60 dias depois de sua publicação

Na tarde de quinta (3), o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da ação que questiona a paralisação do Fundo Amazônia.
Por 10 votos contra 1, a corte considerou inconstitucionais os decretos do governo de Jair Bolsonaro que alteraram as regras de funcionamento do fundo e determinou sua reativação em até 60 dias. O prazo para o cumprimento da decisão começa a correr depois de sua publicação, o que pode ocorrer a qualquer momento. Apenas o ministro Nunes Marques divergiu.
O mecanismo financeiro está suspenso pela administração federal desde abril de 2019. Criado em 2008, tem cerca de R$ 3,2 bilhões parados hoje. Antes da gestão Bolsonaro, alocou R$ 1,8 bilhão para projetos de combate ao desmatamento, conservação e uso sustentável da floresta. Parte importante dos recursos foi utilizada pelo próprio Ibama e estados amazônicos em ações de fiscalização ambiental.
Oito ministros concordaram com a determinação da presidente do STF e relatora do caso, Rosa Weber, de que governo não volte a suspender as operações e cumpra o decreto de criação e as normas internas do fundo estabelecidas antes do governo Bolsonaro. Entre os favoráveis à ação, o ministro André Mendonça julgou desnecessário atender esses dois pedidos porque, segundo ele, já estariam contemplados nas demais solicitações.
O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 59 começou no dia 6/10. A ação foi apresentada pelo PT, PSB, PSOL e Rede Sustentabilidade em junho de 2020, com o apoio de redes e organizações ambientalistas, como o Observatório do Clima (OC).
Os ministros avaliaram que outras demandas listadas na ADO ‒ de retomar a análise de projetos e o repasse de recursos com a gestão de um colegiado com participação da sociedade civil e governos amazônicos ‒ também ficaram prejudicadas por causa do atendimento dos demais pedidos e de outra decisão, de abril, que obrigou o governo a recriar o Comitê Orientador do Fundo Amazônia (Cofa).
As decisões de quinta e de abril fazem parte do chamado “pacote verde”, conjunto de sete ações apresentadas ao STF por partidos de oposição, com apoio da sociedade civil, com o objetivo de conter o desmonte de políticas ambientais realizado pelo governo Bolsonaro.
Crise diplomática
A manifestação do governo norueguês, na segunda (31), no sentido de retomar as operações do Fundo Amazônia, um dia depois da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, dá a medida do descontentamento do país escandinavo com a atual gestão brasileira sobre o assunto. Noruegueses e alemães são os principais doadores do mecanismo financeiro.
"Em relação a Lula, nós observamos que, durante a campanha, ele enfatizou a preservação da floresta amazônica e a proteção dos povos indígenas da Amazônia", disse o ministro norueguês do Meio Ambiente, Espen Barth Eide. "Por isso estamos ansiosos para entrar em contato com suas equipes, o mais rápido possível, para preparar a retomada da colaboração historicamente positiva entre Brasil e Noruega", concluiu.
Em junho, um relatório da Controladoria Geral da União (CGU) acusou o Ministério do Meio Ambiente de ameaçar a continuidade do Fundo Amazônia e as políticas ambientais que ele viabilizou ao extinguir, “sem planejamento e fundamentação técnica”, seu Comitê Técnico (CTFA) e o Cofa.
No início de 2019, por meio de três decretos, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tentou mudar as regras de funcionamento interno do fundo e extinguiu os dois colegiados, sem avisar os doadores.
Salles justificou que queria aprimorar a governança e destinar recursos para a iniciativa privada. Também apontou supostas falhas e fraudes, em especial na destinação de recursos a projetos de organizações não governamentais, mas sem nunca apresentar provas.
Os governos norueguês e alemão não aceitaram as propostas do ministro à época, entre elas a de excluir a sociedade civil do Cofa. Salles reza na cartilha bolsonarista de criminalização infundada das ONGs.
A série de medidas desencontradas e desinformações gerou uma crise diplomática e a suspensão das atividades. De lá para cá, o governo Bolsonaro alegou que seguia negociando com os doadores, mas manteve o fundo parado.

Governo não tem direito de ‘não agir’
No voto apresentado na semana passada, Weber reconheceu que o governo tem autonomia para propor um novo modelo de governança, mas não tem o direito de “não agir” em relação aos deveres de proteção ambiental. A ministra ressaltou que o julgamento aconteceu três anos e meio depois da paralisação do mecanismo financeiro, sem que o Executivo tenha proposto qualquer solução do problema.
“A reformulação do Fundo Amazônia por ato normativo do Poder Executivo, nos termos em que realizada, ato unilateral sem qualquer participação social, sem prévio planejamento e estudo de gestão de risco, destaco, configura autêntica ofensa direta à Constituição”, afirmou. Para a ministra, a ação do governo federal colocou em xeque o dever do Estado de proteger a Amazônia e o direito da sociedade brasileira ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Weber reforçou que o Fundo Amazônia foi um dos responsáveis pela queda do desmatamento, entre 2008 e 2012. Por outro lado, apontou que a suspensão das suas atividades por Bolsonaro foi um fatores que contribuíram para a reaceleração da destruição da floresta nos últimos anos. A ministra lembrou que, entre 2004 e 2012, o desmatamento caiu 83%, enquanto subiu 73% entre 2018 e 2021.
Efetividade de proteção
“O meio ambiente é considerado um patrimônio comum de toda a humanidade e isso traz a necessidade de uma maior efetividade de proteção”, disse o ministro Alexandre de Moraes. “Não é possível se falar sobre proteção ao meio ambiente, efetividade dessa proteção, sem seus instrumentos. E um desses instrumentos é o Fundo Amazônia", insistiu.
Moraes e outros ministros repetiram que a paralisação do mecanismo de financiamento faz parte do “estado de coisas inconstitucional” observado em função da desestruturação das políticas ambientais dos últimos anos.
O ministro Edson Fachin concordou com o argumento dos autores da ADO de que a suspensão das operações do fundo significa “omissão reiterada e sistemática” do dever de proteção ambiental da União. Ele acrescentou que, diante disso, há também ação contra o princípio do “não retrocesso em matéria de direito ambiental”.
“A Amazônia sofre com o aumento do desmatamento, aproximando-se de um ponto de ‘não retorno’ e distanciando-se, cada vez mais rapidamente, do alcance das metas climáticas internacionalmente acordadas”, defendeu o ministro. “Portanto, não se trata apenas de obedecer a dimensão formal da Constituição brasileira strictu senso. Trata-se também de um dever de obediência a convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e que, portanto, são normas, e regras, e princípios vinculantes à ordem interna”, asseverou.
“Em 2019, o governo extinguiu as políticas destinadas à proteção da Amazônia, como o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm) e o Fundo Amazônia, sem implementar qualquer outra alternativa. O resultado é o descumprimento de metas climáticas pelo Brasil, devido aos seguidos aumentos nas taxas da devastação. Fez bem o STF ao colocar fim ao descalabro da omissão governamental generalizada”, avalia o consultor jurídico do ISA Mauricio Guetta
Autonomia do governo
Único a votar contra a ADO 59, o ministro Nunes Marques repisou o argumento apresentado pela Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) de que o governo teria autonomia para reformular o modelo de governança do Fundo Amazônia e que os decretos publicados para isso não o inviabilizaram. De acordo com ele, a administração federal vem cumprindo o dever de desenvolver políticas de combate ao desmatamento e não caberia ao STF impor uma “opção política” na área.
“O poder público pode a qualquer momento revogar decretos anteriores, respeitados apenas os eventuais direitos adquiridos e os atos jurídicos perfeitos", alegou. "O governo não eliminou o Fundo Amazônia, mas, sim, vem buscando alternativas para atualizar a forma de gestão e de aplicação dos respectivos recursos", completou.