O ISA conversou com o rezador e liderança de 106 anos da Terra Indígena Guyraroká (MS). Ele nos lembra que a luta dos Guarani Kaiowá é, acima de tudo, uma luta pelo futuro da humanidade
Historicamente marcada por perseguições, torturas, trabalhos forçados, prisões e deslocamentos compulsórios, a Terra Indígena (TI) Guyraroká, localizada em Mato Grosso do Sul, é um símbolo da resistência e luta pelos direitos territoriais indígenas. Desde o início do século XX, a comunidade vive as consequências da colonização, com ações violentas do Estado Brasileiro que resultaram em massacres e na contínua determinação dos povos indígenas em permanecerem ou retornarem aos territórios de que foram expulsos.
Em abril deste ano, a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos reconheceu e pediu perdão pelas graves violações de direitos humanos cometidas contra o povo Guarani Kaiowá na TI Guyraroká. O pedido de desculpas, no entanto, não resultou na homologação da área – declarada há mais de 15 anos, perpetuando uma situação de constante insegurança às famílias guarani kaiowá que ali vivem.
Aos 106 anos, Tito Vilhalva é rezador, liderança da comunidade e tem dedicado toda a sua vida ao reconhecimento desse território. Ele é um dos grandes guardiões de rezas como as que garantem as chuvas e, nas suas palavras, a proteção dos povos indígenas e de todo o Brasil. É apenas nos tekoha, territórios tradicionais de seu povo como Guyraroká, que esses saberes podem ser perpetuados. Com a força de sua voz, Tito nos lembra que a luta indígena é, acima de tudo, uma luta pelo futuro da humanidade.
Nos últimos anos, o cenário político em torno das Terras Indígenas no Brasil tem sido marcado por retrocessos. Em 2014, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a portaria declaratória da TI Guyraroká, baseada na tese do Marco Temporal. A decisão ignorou mais de um século de esbulho e a violência sofrida pelos povos indígenas, deixando Tito e sua comunidade em um limbo jurídico que persiste até hoje.
Leia o artigo "Mentiras Brancas, Verdades Indígenas: Como o STF Inventou o Marco Temporal", publicado no livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022
Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a tese ruralista, trazendo uma nova esperança para os povos indígenas e o nosso futuro – as Terras Indígenas são as áreas mais ambientalmente preservadas do país. No entanto, logo após a decisão da Suprema Corte, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/2023, reincorporando o Marco Temporal e outros retrocessos aos direitos indígenas na legislação.
Mesmo após ser declarado inconstitucional, o Marco Temporal e os dispositivos da lei 14.701 voltaram ao STF este ano, por iniciativa do ministro Gilmar Mendes, que propôs uma “conciliação” sobre os dispositivos da lei, colocando mais uma vez os direitos indígenas em xeque. Nesta quarta-feira (28/08) acontece a segunda audiência de conciliação. A mesa de 24 representantes titulares tem apenas seis representantes dos povos indígenas.
Em um momento crítico de retrocessos aos direitos indígenas, a incerteza quanto ao futuro de Guyraroká é uma preocupação constante para Tito. “Sempre eu fico pensando, porque se vai demorar a demarcação de Guyraroká, daqui dez, 15, 20 anos, aí eu já não vou participar mais, porque minha idade está avançando, estou com 106 anos que estou vivendo aqui”, lamenta. Tito não só expressa a angústia de quem viu sua terra e existência ser desrespeitada por décadas, mas também a dor de um povo que luta para preservar seus territórios e identidade cultural em um país carregado de racismo contra os povos indígenas.
Nesta entrevista, Tito Vilhalva compartilha a história de violências e deslocamentos que Guyraroká e outras tantas comunidades guarani kaiowá enfrentaram ao longo do século XX, e também suas memórias sobre a ditadura civil-militar, o retorno aos territórios tradicionais de seu povo e a luta constante contra a imposição do Marco Temporal, que ele acredita ser uma ameaça não só para os indígenas, mas para todo o Brasil.
Suas palavras refletem a luta por justiça, a conexão existencial com a terra para os Guarani Kaiowá e a esperança de que um dia Guyraroká seja plenamente reconhecida como o lar legítimo de seu povo. Leia trechos da entrevista concedida ao ISA em 7 de agosto de 2024:
A Terra e o tekoha
Desde muito tempo, muitos anos, milhões de anos, nós andamos no mato pelado, Ñanderu, aquele que é rezador, eles já marcaram a aldeia dele. “Aquele que vai ser aldeia mesmo, aquele vai ser”. Então por isso que nós não pode trocar, porque já tem sangue muito dentro daquela aldeia, então, por isso que nós não pode resolver. A terra é a mesma, tudo igual, tem areia, tem tudo, mas os índios escolheram aquele pedacinho deles. Então aquele pedacinho é deles.
Aqui no Guyraroká desde 1905 já é aldeia mesmo, essa aqui já é aldeia antiga. Eu nasci aqui no Guyraroká, minha esposa também nasceu no Guyraroká. Nós nascemos aqui e nós saímos expulsos por causa da Ditadura. Wilson Galvão, dizia que era Tenente lá em São Paulo. Ele chegou e falou que comprou isso aqui, que era dele. Um dia, à noite, chegou Wilson Galvão com Antônio Albuquerque e deram tiros na nossa roça até meia-noite. Matou sete mulheres e um rapaz. Nós saímos expulsos da nossa aldeia. Nós nos juntamos e fomos para Teý’ikue [Reserva Indígena Caarapó] para nos proteger.
E aí então nós se juntamos e entramos de novo, novamente foi avisado para nós, o Chico Gedro: “é porque a guerra vem aí então esta ditadura é o dono da Guerra”, então tirou expulso. Ele falou “Quantos índio que tem aqui?” Nós falamos que tinha dois mil índios. Porque esse aí ele matava também, então saímos tudo e fomos lá se aguardar lá no Teý’ikue e aí entramos de novo aqui no Guyraroká.
Aí o que que aconteceu, nós voltamos, ficamos na beira da Aldeia Guyraroká, perto do córrego Passo Fundo, e tinha muito peixe, muita coisa também, muita caça. Aí chegou também o Jorge, de São Paulo também, disse que era sargento de São Paulo e ele comprou. Aí o que que aconteceu, aí nós saímos ficamos numa fazenda deram um pedacinho pra nós morar, mas a turma que tinha no Guyraroká já não voltou mais porque tinha medo do tiro, então ele matou muita coisa aí, matou muita gente, né?
Nós acabamos de sair daqui em 1988, muita gente, meu avô, tudo saiu daqui do Guyraroká em 88 acabamos de sair. Minha avó já faleceu naquela época, tá aí o cemitério dela, tudo aí. E eu fiquei também aí trabalhando de peão arrendando terra para plantar milho, arroz feijão para criar um porquinho para manter a minha família, né? E então entrei novamente aqui em 2008, entrei novamente em Guyraroká, fui lá onde tá o cemitério do meu pai, minha mãe, minha sogra, tudo aí… Então o fazendeiro foi lá e falou pra mim: “Quem mandou você entrar, quem mandou entrar aqui, quem que trouxe você” e eu falei “não, estamos aqui na aldeia, essa aldeia há muitos anos” E então levaram nós outra vez expulsos, levaram cheio o caminhão, levaram e soltaram e chegamos lá no Teý’ikue de novo.
O tempo da ditadura, da guerra, não tinha dó para matar, e até agora tá matando. Você vê que aqui no Guyraroká, o fazendeiro mesmo, três dos meus filhos mandou matar. Tá aí o cemitério dele. O Ambrósio, o Beto, a Irene. Tá aí o cemitério deles. Se alguém quiser provar pode vir, tranquilo, vou mostrar para ele o que que aconteceu.
Demarcação e Marco Temporal
Por que colocaram o Marco Temporal? Já ocuparam muito, muito, muito patrimônio. Eles criaram o boi, derrubaram muita madeira, acabou a mata. Acabou. Acabou tudo, tudo tudo. Não tem mais nada. Só a gente olhar. O que que nós vamos fazer?
Será que nós não é não é ser humano? Será que só o fazendeiro rico? O dinheiro, ele defende a gente, mas ele não defende na hora da nossa despedida. Ninguém leva o dinheiro. Terra ninguém leva. Já ocuparam muito, muito.
Quando o ruralismo nasceu? Ele que fez a terra? Quem que fez a terra? Porque a terra quem fez foi o Deus. Ele que fez a terra. Não é nós não. Todos nós pensamos que a terra já está feita. E a terra não é para vender. A terra é nosso corpo. A terra é nossa vida. A nossa alimentação. Porque daí que sai arroz, feijão, milho, cria gado, cria tudo.
E o que que tá fazendo o ruralismo pelo povo indígena, saído expulso, matando, gritando, dando tiro por cima. Então quer dizer que tem a história também que eu falo: o Brasil fez a fábrica, armamento, não é pra caça, é para matar os povos. Pode ser brasileiro, pode ser pobre, pode ser o que for ele vai matar.
Por que é que colocaram o Marco Temporal? Esse Marco Temporal prejudicou todo o país, o brasileiro. Vai acabar a água, já secou a água, não vai levantar mais arroz, não vai criar mais nem milho, nem soja, não vai chover mais. Por que que colocaram o nome esse Marco Temporal? Esse ‘tempo’, o nome é Ñanduá, que é “O Deus que anda”. O Deus que tá olhando, o Deus que tá aí. Esse Deus ficou triste porque colocaram o nome ‘Marco Temporal’. Eu conheço. Então por que que colocaram esse nome de Ñandejara rera [nome do Nosso Dono] ‘Marco Temporal’? Então tinha que ver outro para pôr, mas agora já colocaram, o que que vai fazer? Já não vai voltar mais.
E mataram muito rezador, mandou matar, o fazendeiro. Então por isso essa terra não vai chover e vai vir ainda mais grave. E outra coisa, se não entregar a terra vai ficar pior ainda. Tem que entregar essa terra, tem que entregar a aldeia kue [aldeia antiga]. Tekoha kue então ele tem que entregar, pro dono outra vez, pra ele rezar de novo. Se não entregar, o tempo vai continuar desse jeito. Esse Temporal que não pode falar “tempo”, esse “apyka” [assento], Ñandejara apyka. Esse aí vai prejudicar o Brasil e todo mundo e vai prejudicar mais ainda, daqui uns dias vai ter um terremoto, vai ter muita coisa porque acabou o rezador.
Demarcação acabou. Ninguém resolve. Só fica matando o cacique, só tá matando índio. Então tinha que sentar e conversar. Sempre eu fico pensando, porque eu daqui um dia… se vai demorar Guyraroká, a demarcação, daqui 10, 15, 20 anos, eu já não vou participar mais. Porque a minha idade está avançando demais. Estou com 106 anos. Essa demarcação, quando que vai acontecer?
Já veio antropólogo, engenheiro. Já medimos tudo. Fez o papel também. O relatório tá na mão do Gilmar Mendes, parece que o Gilmar Mendes jogou no lixo. Será que a minha proposta não tá valendo nada? Já usaram muito essa terra. Eu não estou roubando a terra. Eu não quero objeto. Não quero gado. Não quero cerca. Eu não quero casa. Eu quero a terra limpa. Leva tudo. Então, essa é a minha proposta. A minha palavra. Eu quero morar sossegado e criar também animal, trabalhar na roça. Para não vir dizer que índio é ladrão, que o fazendeiro que tá dando a comida. Não. Eu sou trabalhador.
Terra envenenada
Agora chegou agrotóxico também. Aí tudo envenenado, até a terra tá envenenada, tudo. A comida tá envenenada, por isso o brasileiro não dura mais nem 70, 80 anos e nós, índios, nós não come veneno. Por isso eu tô aqui hoje com 106 anos, conheço muita história para mim falar: está envenenado o Brasil, tá envenenada a terra. Então não sei da onde saiu esse veneno esse agrotóxico, vem aí judiou, coitado a terra e o Deus tá olhando, [o homem] tá fumaçando de veneno, então isso tá estragando para todo o Brasil. Com esse agrotóxico não tá dando mais nem batata, nem milho, nada. Mandioca tudo embolorada, não cozinha mais... Então aí a gente fica triste. Por isso fico pensando nessa luta que tá acontecendo para nós aí. Muita gente reclama e não resolve nada, então é isso: ou vai ficar assim mesmo ou vai matar envenenado os povos do Brasil. Não é só o índio: todos, tanto branco, tanto karaí [não indígena], tanto que for tá comendo veneno.
Minha roça aqui, eu estava plantando aqui feijão, nunca tinha visto: aí o feijão tava baixando, tava tudo no jeito, eu tava arrancando um pezinho lá para cozinhar feijão novo no outro dia quando eu passei lá também pertinho, aí passou a lavoura do arrendatário, né? Então aí ele passou veneno aí de avião e no outro dia queimou tudo, tudo... ficou preto o feijão. Igual o milho que tá acontecendo agora. Eu tô vendo aí olhando o milho: a espiguinha desse tamanhinho. Tem lugar que queima tudo então é assim que tá passando a lavoura do indígena também. E o que é que eu vou fazer? Quem vai resolver, parece que não tem justiça, parece que não tem ninguém resolve nada. Então isso aí que eu fico pensando também.
A reza é a nossa arma
Tem que andar, plantar essa terra aí para poder todos nós viver, porque por isso que a fome está demais. A fome tá demais. Ninguém planta mais. Se planta a mandioca, você planta arroz, você planta feijão e não dá mais, porque o Deus, como dizem vocês, para entender o que eu falo, ele fechou a torneira. Então a torneira para abrir de novo tem que rezar.
Eu sei plantar arroz, toda coisa, cereais também. A Terra é a mãe da gente, é o pai da gente, sai tudo pela terra. Não vem do céu não. Céu o que vem é só a chuva para poder criar a plantação. A água vem lá do céu e por isso que nós rezador, se não rezar, não dá nada. Você pode lembrar que em 1960, 1970 a chuva era direto. Era uma saúde para gente. Hoje não. Tá vendo você do jeito que vem a seca. Vai secar tudo porque tá contra a proposta do índio.
Então nós temos a nossa arma: é a reza e a flecha, que é para caça, então nós não tem a fábrica de armamento. Pra nós a reza é a nossa arma. Não tá na Bíblia, não tá no escrito, ninguém escreve a nossa reza, do Ñandejara, então isso tá gravado, os cacique rezador, tá gravado a palavra do Deus para contar a história, para rezar.
Eu rezo, eu sempre rezo no Guyraroká, mas se eu chamar eu sei que ele vem, mas depois eu levo prejuízo que a gente, a pessoa, sozinho, você vem para manter essa saúde muita coisa sozinho, depois já o Deus já fala. 'Ah, por que que você vem sozinho se tem tanta gente ficar olhando ninguém ajuda'. Agora se tiver bastante gente, não. Deus resolve logo.
Eu não tenho tudo, mas tudo que eu tenho é só essa reza. Então, por isso que eu tô passando aqui para contar essa história. Essa história da demarcação... Eu fico triste há muitos anos. Muitos anos. E não quer demarcar até agora.