Juiz condutor da mediação ignorou pedidos de indígenas e abandonou sessão antes do fim
Marcada por uma série de violações aos povos indígenas, aconteceu nesta segunda-feira (05/08), no Supremo Tribunal Federal (STF), a primeira audiência pública de conciliação sobre a Lei 14.701/2023, aprovada em dezembro do ano passado. Participaram representantes do Congresso Nacional, dos partidos políticos que questionam a Lei no STF, do governo, dos povos indígenas, dos estados e dos municípios. O ministro Luís Roberto Barroso, e o relator, ministro Gilmar Mendes, estiveram na abertura da sessão, que depois passou a ser conduzida pelos juízes auxiliares do gabinete de Mendes, Diego Viegas Vera e Lucas Faber.
A proposta de conciliação vem após a proposição de cinco ações que questionam a constitucionalidade da “lei do genocídio dos povos originários”, conforme definição do movimento indígena. Em abril, Gilmar proferiu uma decisão instituindo o grupo de trabalho para a conciliação. Além disso, suspendeu todos os processos de instâncias inferiores relacionados à Lei 14.701/2023 – durante o Acampamento Terra Livre (ATL), maior mobilização indígena do país.
Aprovada em setembro de 2023, com 43 votos a favor e 21 contra, a lei determina que só têm direito ao território tradicional os indígenas que comprovem sua presença no local na data da promulgação da Constituição Federal, em 1988. Além disso, a lei dificulta os processos de demarcação; possibilita a realização de obras em Terras Indígenas sem consulta livre, prévia e informada e admite a abertura das terras indígenas para o arrendamento. A matéria já havia sido julgada inconstitucional pelo STF em setembro de 2023 e a lei recebeu diversos vetos do presidente da república.
O prazo para finalização das sessões de conciliação está previsto para 18 de dezembro de 2024, mas pode ser prorrogado. Na abertura, o ministro Barroso disse que é importante “esperar algumas semanas para vermos se há avanço ou perspectiva real de se chegar a um acordo. Se não houver essa possibilidade, nós vamos retomar a votação pura e simplesmente.”.
Violações aos direitos indígenas
Alguns representantes indígenas, como o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Maurício Terena, antes mesmo do início da audiência, foram impedidos pela segurança do STF de entrar no local. Em vídeo publicado nas redes sociais, Terena pede para que Barroso abra a porta da Corte para os povos indígenas.
“A presidência acaba de dar a ordem de liberação e seguimos sendo barrados. Esse é o cenário conciliatório da Suprema Corte brasileira. Estamos sendo obrigados a estar aqui hoje e essa é a situação”.
Assista ao vídeo:
Olha, pra gnt começar uma mesa de conciliação com igualdade material, inclusive com letramento dos principais condutores, talvez falte mais 500 anos.
— Juliana de Paula Batista 🌳 (@jusuindara) August 5, 2024
Aqui está quase encerrando. Mas a imagem que traduz o dia de hoje é essa: os indígenas e seus advogados sendo barrados no STF. pic.twitter.com/yid0RPIetn
Na abertura da sessão, o ministro Barroso fez um pedido de desculpas público para o grupo. “Eu queria pedir desculpas às pessoas que foram indevidamente barradas na porta, representantes das comunidades indígenas. Foi um erro grave da segurança, com as pessoas já devidamente repreendidas e peço desculpas porque é o que a gente pode fazer quando existe um erro”.
Era apenas o começo de uma série de outras violações pelas quais passaram os representantes indígenas naquele dia.
Maurício Terena solicitou, ainda no início da sessão, a suspensão da Lei 14.701/2023. “A gente entende que a não suspensão da lei tem trazido uma situação de grave violência de direitos humanos dos povos indígenas. Eu cito aqui o caso do Mato Grosso do Sul*, que tá uma situação de extremo confronto, dada a vigência da lei.”
Confira o box ao final da matéria
Para o coordenador executivo da Apib Kleber Karipuna, a suspensão da lei seria uma garantia mínima de continuação do diálogo. “A gente entende que a lei precisa ser suspensa sim para poder, em pé de igualdade, conseguir seguir minimamente nesse processo. Não havendo a suspensão da lei, a gente continua com a insegurança jurídica nos territórios, os povos indígenas continuam sendo atacados”.
Tutela e barganha
Presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana reiterou que o momento era uma oportunidade para propostas e soluções, mas que elas “não venham colocar como retrocessos direitos já reafirmados na nossa Constituição, direitos que são fundamentais, direitos indisponíveis que dão a garantia que os povos indígenas tenham sua vida pro futuro também. É justamente nesse espírito de não retroceder no que o Supremo já avançou, que é importante que esses princípios e esse espírito estejam presentes nessas discussões sem precisar invisibilizar ou negar a existência dos povos indígenas.”
A advogada da Apib, Eloísa Machado, questionou Diego Viegas, juiz auxiliar que conduziu a sessão depois da ausência de Gilmar Mendes, sobre o que aconteceria caso a entidade decidisse se retirar do processo. “Não há problema algum, só que a mesa de negociação continuará”, respondeu. O juiz explicou que, na falta de uma representação dos povos indígenas, a Funai estaria apta para suprir esse espaço.
“Se aqui os povos indígenas se manifestarem contrariamente a qualquer tipo de solução, evidentemente creio que a representação da Funai, do poder executivo, que também representa os interesses dos indígenas, saberá acolher esse intento. Afinal de contas, a Funai, nesse sentido, está para assistir os interesses dos representantes indígenas.”, falou Diego Viegas.
Emocionado, Alberto Terena, liderança do povo Terena e coordenador executivo da Apib, criticou o posicionamento. “Nós estamos aqui como representantes indígenas do nosso povo. Sou considerado perigoso pelo estado brasileiro por ir em busca do meu direito. Aí estar aqui diante do Supremo Tribunal [Federal] como uma representação e dizer que ainda somos representados por um órgão indigenista? O órgão indigenista está em busca de efetuar os direitos nossos dentro do nosso país, não tutelar novamente, não o Supremo dizer que nós somos tutelados. O nosso direito constitucional originário nós não vamos negociar e não é o órgão indigenista que vai nos representar diante disso. Jamais. Jamais. Mais uma vez o estado brasileiro vai estar negando o direito ao nosso povo”, desabafou.
De acordo com Viegas, houve um entendimento errado de sua fala, que não insinuava tutela dos indígenas por parte da Funai, mas que o órgão indigenista estaria apto para colher impressões do movimento na ausência da Apib. A fala foi novamente questionada.
“Nos sentimos muito violados em relação à questão da tutela do estado. Entendendo que pode ter sido um posicionamento errôneo do juiz que estava ajudando a conduzir a conciliação, mas afirmar que qualquer posicionamento do movimento indígena, retirando-se do processo da câmara de conciliação, a Funai estaria colhendo a posição do movimento. Pra gente é um posicionamento que remete novamente ao processo da tutela que os povos indígenas passaram por algum tempo e que foi superado pela Constituição de 88, principalmente. Mas isso só revela o quanto o preconceito e o racismo institucional estão enraizados nas esferas de poder”, afirmou Karipuna.
Secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Eloy Terena destacou a importância da presença das lideranças indígenas na mesa de conciliação. “A Apib é a representação máxima e legítima dos povos indígenas. Não tem como a gente discutir aqui o direito dos povos indígenas sem levar em consideração essa autodeterminação que os povos indígenas têm”.
Em meio à audiência, o Juiz auxiliar Diego Viegas apresentou um áudio do senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, afirmando que “existe um acordo entre poderes de que enquanto vocês estiverem aqui, não haverá andamento da PEC 48 no Congresso”.
A PEC 48 é uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende incluir a tese do marco temporal na Constituição Federal. O senador Hiran Gonçalves (PP-RO) apresentou a PEC no Senado uma semana após o STF decidir que a tese do marco temporal é inconstitucional.
Sem concessões para indígenas
Investido em definir as datas das próximas audiências, o juiz Diego Viegas fez uma rápida consulta aos membros da comissão especial e ignorou o pedido dos representantes indígenas de um prazo de 48 horas para informar se teriam disponibilidade e se pretendem permanecer no processo de conciliação.
Eloy Terena fez um apelo para que o juiz desse “um passo atrás" e juntos pensassem uma metodologia para atender aos indígenas. “Imagina, são 305 povos, falantes de 274 línguas. Imagina a dificuldade dessas 5 lideranças explicarem tudo isso que a gente tá debatendo aqui, lá na base. Então pedir pro Supremo ser mais plural, no sentido de compreender essa angústia que os povos indígenas estão trazendo aqui. Nós temos aqui lideranças que viajaram para estarem aqui, nem dormiram inclusive. Tem lideranças que ontem à noite, há menos de 24 horas, nesse exato momento estavam sendo atacadas. Para a gente começar a falar em conciliação é necessário criar um ambiente jurídico seguro e saudável”.
Diego Viegas só cedeu após muitos argumentos de que esse tempo era necessário para que os representantes consultassem suas bases e após uma representante não indígena do MPI também fazer o pedido. Mesmo assim, as datas ficaram pré-determinadas para os dias 28 de agosto, 9 e 23 de setembro.
Próximo às 19h, Diego Viegas informou que precisaria se ausentar da sessão para comparecer à uma audiência de custódia. Advogada da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Judite Guajajara pediu várias vezes para que o juiz permanecesse e a escutasse, mas isso não aconteceu.
“A sensação que eu tenho aqui há cinco horas que eu tô aqui é a sensação de que toda vez que nós indígenas falamos alguma coisa é refutada. Qual o valor da voz indígena nessa mesa? Eu acho que um dos propósitos da mediação da conciliação é você ouvir e a sensação que eu tenho é que desde o início que nós chegamos aqui ninguém ouve o que os povos indígenas estão dizendo. Nós pedimos 48 horas, mas precisou ouvir uma não indígena reforçar isso para poder ser aceito. Nós queremos diálogo. Eu acho que os povos indígenas têm muita experiência sobre estratégia de diálogo. Há muito tempo nós ensinamos como é que se faz diálogo e estar sentado nessa mesa é uma demonstração dessa disposição, mesmo nossos parentes sendo atacados, mesmo a maioria dos povos indígenas já dizendo ‘não queremos conciliação’. Nós abrimos o coração, nós estamos aqui e nós temos tudo a perder. Por isso que a gente tá resistindo aqui até o último segundo. Mas mais uma vez o que demonstra esse cenário é que não é um debate jurídico, mas um debate político, a partir do momento que nós povos indígenas não somos respeitados. Isso aqui tem sim a potencialidade de ser um experimento extremamente novo e que tem a potencialidade de ser muito positivo. Mas se nós continuarmos nesse atropelamento, isso aqui vai ser marcado na história como uma das maiores violências aos povos indígenas do Brasil. É difícil você pensar em pacificar o país, porque não fomos nós que criamos conflitos, pelo contrário, nós estávamos aqui e quem chegou foi que criou conflitos e agora querem que os povos indígenas paguem a conta sem nos dar o mínimo de condições de dialogar”.
Assista à fala de Judite Guajajara:
Durante coletiva de imprensa ao final da sessão, Kleber Karipuna avaliou o primeiro dia de audiência e reforçou que o movimento ainda dará sua resposta se está de acordo com as datas apresentadas e se permanecerá no processo de conciliação até o final.
“Trazemos uma impressão muito ruim desse processo como um todo. As regras que não estavam ainda postas, que foram colocadas agora, não são regras muito favoráveis aos povos indígenas. Apesar de se ter relatado que vão buscar ter a decisão pelo consenso da maioria, há um processo também de votação e que os povos indígenas, nesses processos de disputa, nesse sentido, saem perdedores. Tivemos longas horas de debates desgastantes, até mesmo desentendimentos por parte da condução da conciliação. O que a gente quer trazer aqui nesse momento pros povos indígenas, pro movimento indígena brasileiro, é que a Apib e as nossas organizações regionais, as lideranças que estão nesse processo só iremos dar continuidade se o movimento indígena definir que é pra estarmos dando continuidade nesse processo de diálogo e que não iremos em momento algum negociar nenhum direito dos povos indígenas”.
Situação no Mato Grosso do Sul
Em meio à situação de violência de fazendeiros contra indígenas Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, uma comitiva com a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, a presidente da Funai, Joenia Wapichana, a deputada federal Célia Xakriabá, o secretário-executivo do MPI, Eloy Terena e outros representantes do governo, partiu de Brasília na manhã do dia 6 de agosto.
O grupo foi visitar uma das retomadas da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina (MS), onde dez indígenas ficaram feridos depois de um ataque a tiros.
De acordo com relatos dos indígenas, mesmo com a presença da Força Nacional no local, na noite de 5 de agosto, novos ataques a tiros de borracha e rojões foram feitos contra a retomada.
A ministra Sonia Guajajara falou que a Lei do Marco Temporal não afeta a retomada e que, junto às outras autoridades, vai levar a situação para o governo federal e para o judiciário dar celeridade aos processos “porque não dá mais pra manter essa situação de insegurança permanente”.
Segundo dados publicados pelo último Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Mato Grosso do Sul é o segundo estado mais violento para indígenas no Brasil. Foram 43 casos de assassinatos contra indígenas registrados em 2023; 93 casos de violência contra a pessoa; 37 casos de suicídio e 190 casos de violência contra o patrimônio.