Livro traz histórias e bastidores de momentos marcantes da trajetória do antropólogo Beto Ricardo, um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA)
A importância da obra e do legado de Carlos Alberto (Beto) Ricardo, um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), tem raízes diretas em uma ação pioneira do antropólogo no começo dos anos 1980, quando decidiu questionar – de forma científica – uma falsa verdade propagada pela ditadura cívico-militar brasileira.
Além de ter provocado um genocídio de indígenas, com mais de 8 mil mortes decorrentes da repressão, segundo dados de 2014 da Comissão Nacional da Verdade, a ditadura afirmava que havia um “vazio demográfico” na Amazônia para tomar terras e expulsar populações. O objetivo era ampliar a fronteira agrícola e a exploração mineral e de energia – eixos centrais do Plano de Integração Nacional dos militares.
Para confrontar a política ditatorial, Beto e um grupo de amigos-pesquisadores desenvolveram um sistema próprio e recensearam a população indígena da região. Ficou comprovado, por meio dos dados, que ela não estava desaparecendo. Muito pelo contrário: os povos indígenas estavam vivos e só aumentavam.
Com isso, seus direitos não poderiam mais ser definidos como os de uma categoria social transitória, fadada ao desaparecimento, mas sim como sujeitos de direitos permanentes. O levantamento liderado por Beto contribuiu para uma mudança de paradigma profunda na sociedade brasileira, que culmina mais adiante com a inclusão do Capítulo do Índio na Constituição Federal de 1988.
Em uma narrativa bem humorada e envolvente, Beto Ricardo relembra este e outros marcos históricos de sua atuação, do ISA e do movimento socioambiental brasileiro na obra “Uma Enciclopédia nos Trópicos”, escrita por Ricardo Arnt em parceria com Beto.
Editado pela Zahar, selo do Grupo Cia das Letras, o livro traz prefácio do escritor e ativista indígena Ailton Krenak e posfácio do jornalista Leão Serva e está dividido em 18 capítulos, que versam sobre o período entre 1970 e 2022.
Um dos momentos mais marcantes contados na obra é protagonizado por Ailton Krenak, amigo de longa data de Beto. O gesto no Congresso Nacional, em que pintou o rosto enquanto discursava, ganhou as manchetes mundiais e contribuiu para pressionar pela garantia da inclusão dos direitos dos povos indígenas na Constituição de 1988.
“O Ailton queria subir na tribuna e pintar o rosto em protesto contra a supressão dos direitos indígenas. Para tanto, capturou minha gravata de crochê e um paletó branco do Márcio (Santilli), que contrastava com a pintura do rosto. Na falta de jenipapo ou urucum, conseguiu tintura de cílios e sobrancelhas com as secretárias parlamentares e acondicionou-a num potinho aberto no bolso do paletó, sem derramar. Foi um show. A cena da cara pintada de preto, diante da nação, foi captada por jornalistas e cinegrafistas e correu o mundo, denunciando o desrespeito aos direitos dos índios. O paletó, infelizmente, dançou. Ficou todo manchado de preto.”
Figura importante no acompanhamento da instalação de redes de radiofonia entre os povos da Amazônia e outras atividades no Alto e Médio Rio Negro, Beto Ricardo trabalhou junto de figuras renomadas como Darcy Ribeiro, Eduardo Viveiros de Castro, Davi Kopenawa, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Marina Silva, Milton Nascimento e Gilberto Gil.
“Companheiro de tantas lutas, muitas vitórias e algumas perdas, Beto Ricardo marcou minha vida com seu exemplo de coragem e determinação no caminho de militância que escolheu para si. É gente feita da matéria rara que formou o campo indigenista imaginado por figuras como Darcy e Berta Ribeiro”, diz Ailton Krenak no prefácio da obra.
“Uma Enciclopédia nos Trópicos” também conta a história do surgimento e fundação do ISA. Ao discorrer sobre o processo de definição do nome da organização, nascida em 1994, Beto Ricardo traduz a essência da luta encampada em sua juventude e que segue orientado o trabalho de umas das maiores organizações socioambientais no Brasil.
“Discutimos muito a grafia do nome, com ou sem hífen, dado que a gramática anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (...) mandava empregar “sócio-ambiental”. Venceu o voluntarismo de subverter a gramática pela disposição de escrever “socioambiental” junto. Nossa licença poética foi abolir o hífen; queríamos a síntese, não a justaposição.”
No último capítulo, intitulado “O céu que nos protege”, o indigenista alerta sobre os efeitos da crise climática para a sociedade brasileira, cenário marcado pela urgência do protagonismo dos povos tradicionais e da valorização da sociobiodiversidade para a manutenção da vida como conhecemos.
“Se um dia a Amazônia sucumbir à devastação e os conhecimentos dos xamãs desaparecerem, o céu cairá sobre o povo da mercadoria. O teto já está estalando.”
Sobre os autores
CARLOS ALBERTO (“BETO”) RICARDO é antropólogo e ativista desde a resistência à ditadura militar no Brasil. Foi um dos fundadores do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), criou e editou a série Povos Indígenas no Brasil junto com Fany Ricardo, recebeu o prêmio Goldman de Meio Ambiente de 1992 e fundou diversas organizações, como o Instituto Socioambiental (ISA), o Instituto Atá e a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg).
RICARDO ARNT é jornalista e escritor. Foi editor da Folha de S. Paulo, do Jornal do Brasil, do Jornal Nacional da TV Globo, da TV Bandeirantes e das revistas Exame, Superinteressante e Planeta. É autor de vários livros, entre os quais O que é política nuclear (1983); Um artifício orgânico: Transição na Amazônia e ambientalismo (1992); Jânio Quadros: O Prometeu de Vila Maria (2004); e O que os economistas pensam sobre sustentabilidade (2010).