Manchetes Socioambientais
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“O encontro entre índios e brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o desequilíbrio perpétuo do mundo um pouco mais para frente, adiando assim o seu fim.”
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos fundadores do ISA
O tema "Povos Indígenas" está na origem da existência do Instituto Socioambiental. Lá se vão pelo menos quatro décadas de comprometimento e trabalho com o tema, produzindo informações para a sociedade brasileira conhecer melhor seus povos originários. Desde sua fundação, em 1994, o ISA dá continuidade ao trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que havia sido iniciado em 1980 e que, por sua vez, remonta ao começo dos anos 1970, quando o então governo da ditadura militar lançava o Plano de Integração Nacional, com forte componente de obras de infraestrutura na Amazônia, região que era então descrita pelo discurso oficial como um "vazio demográfico".
Por meio dos relatos coletados, dados produzidos e pesquisas empreendidas por uma rede de colaboradores espalhada pelas diversas regiões do País, o Cedi ajudou a derrubar essa tese. Ao dar publicidade às informações levantadas por essa rede social do tempo do telex, o Cedi colocou, definitivamente, os povos indígenas e suas terras no mapa do Brasil. Seus integrantes ainda participaram ativamente no movimento de inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e, juntamente com integrantes do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) e ativistas ambientais, fundaram o ISA em 1994.
De lá para cá, ampliando sua rede de colaboradores em todo o País, o ISA se consolidou como referência nacional e internacional na produção, análise e difusão de informações qualificadas sobre os povos indígenas no Brasil. O site "Povos Indígenas no Brasil", lançado em 1997, é a maior enciclopédia publicada sobre as etnias indígenas no Brasil, com suas línguas, modos de vida, expressões artísticas etc. O site é uma das principais referências sobre o tema para pesquisadores, jornalistas, estudantes e acadêmicos.
A atuação hoje é transversal aos territórios onde atuamos, especialmente na Bacia do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e Bacia do Rio Negro, no Amazonas e Roraima, e também envolve povos indígenas de todo o Brasil, por meio da atualização permanente do site e de seus mais de 200 verbetes, inclusão de novos textos sobre etnias emergentes e indígenas recém-contatados, além do monitoramento e cobertura jornalística sobre situações de violência e perda de direitos contra estas populações. O tema "Povos Indígenas" ainda é tratado no site "PIB Mirim", voltado ao público infanto juvenil e de educadores.
O monitoramento de Terras Indígenas também é um eixo central do nosso trabalho com o tema, e remonta à sistematização de dados e divulgação de informações iniciada pelo Cedi em 1986, e se dá por meio da produção de livros impressos e mapas temáticos sobre pressões e ameaças, como desmatamento, mineração, garimpo, obras de infraestrutura, entre outras, além do site "Terras Indígenas no Brasil".
Confira os conteúdos produzidos sobre este tema:
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Site especial voltado ao público infanto-juvenil e de educadores |
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Painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
O sócio-fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, comenta a discussão promovida pelo Supremo sobre o marco temporal e defende o avanço das demarcações
Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja em 14/10/2024
Há um ano, o Congresso promulgou a Lei 14.701/2023, para regulamentar o Artigo 231 da Constituição, referente aos direitos indígenas. O texto restringe as demarcações de terras aos grupos que estavam na sua posse direta em 5/10/88, excluindo os que foram expulsos delas, ou transferidos à força, durante a Ditadura Militar – o chamado marco temporal. A lei também limita o direito ao uso exclusivo dos recursos naturais dessas áreas por essas populações.
Lula vetou vários artigos, mas a maioria dos vetos foi derrubada pelo Congresso. A Apib, Articulação dos Povos Indígenas no Brasil, e partidos políticos recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a constitucionalidade da legislação.
No STF, os processos foram distribuídos para o ministro Gilmar Mendes, seu decano. Ele também é relator de outra ação, que pede ao tribunal que supra a omissão do Congresso na regulamentação das exceções daquele uso dos indígenas sobre seus recursos naturais relativas ao “relevante interesse público da União”. Nesse caso, abrindo a possibilidade de exploração dessas áreas por terceiros. Essa regulamentação está prevista no parágrafo sexto do artigo 231.
Por sua vez, o Senado ameaça aprovar uma emenda constitucional para inserir, na própria Carta, o marco temporal, caso a lei caia no STF. É bom lembrar que a Corte já o considerou inconstitucional em decisão do ano passado.
Diante do acirrado conflito entre os poderes, o relator, em vez de encaminhar o julgamento das ações, decidiu convocar uma tentativa de conciliação judicial, constituindo uma comissão com representação das partes, inclusive do Congresso, e também do governo federal, dos estados e municípios.
O Senado adiou a votação da proposta de emenda constitucional até o término desse processo, previsto para dezembro. Circulam informações na imprensa, no entanto, de que a votação pode acontecer antes disso.
Maiorias e minorias
O Congresso aprovou a Lei 14.701 por significativa maioria, suficiente para a posterior derrubada de vetos. O processo legislativo foi fulminante: o projeto não foi discutido em comissões técnicas e o seu texto definitivo, de interesse da bancada ruralista, só foi divulgado horas antes da sua votação pela Câmara. Povos e organizações indígenas não foram sequer ouvidos, muito menos considerados legítimos para influir no texto da lei. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo próprio Legislativo, prevê a consulta prévia e informada a essas populações sobre projetos que afetem os seus direitos. A norma internacional foi, simplesmente, ignorada.
Numa democracia, as decisões devem emanar da soberania popular, como por meio de eleições, em que prevalece a vontade da maioria. Porém, como adverte Renan Quinalha, “a soberania popular pode entrar em rota de conflito direto com os direitos fundamentais de grupos sociais já discriminados e, neste caso, essa tensão não pode ser resolvida com o sacrifício dos direitos das minorias no altar da vontade das maiorias que se formem, de maneira contingente, nos debates políticos”. A democracia também impõe limites éticos à expressão de vontade da maioria.
Ao promulgar, de forma unilateral, a Lei 14.701, o Congresso extrapolou esse limite e rompeu o próprio pacto constitucional. Vale lembrar que o Artigo 231 foi aprovado por 497 votos (quase unanimidade) no plenário da Assembleia Nacional Constituinte. Os conceitos e disposições que o constituem resultaram de acordos políticos, como o das “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, a nulidade e extinção de atos incidentes sobre elas e a prévia autorização do Congresso para a pesquisa e lavra mineral. Assim como na Constituinte, a comissão de conciliação do STF deveria ater-se ao limite ético.
Não solução
Pode-se entender a polêmica sobre o marco temporal como uma reação ruralista à demarcação de terras indígenas, com o intuito de impedir o seu avanço, sobretudo no centro-sul do país. Porém, esse conceito sequer foi aventado durante a Constituinte. Ele só emerge no debate duas décadas depois, durante o julgamento, no STF, da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima.
A Constituição determina que a União demarque as terras e fixou um prazo, não cumprido, de concluir esse processo em até cinco anos após a sua promulgação. Os constituintes sabiam que esse prazo era exíguo, mas decidiram mantê-lo como forma de induzir o Executivo a se empenhar na sua conclusão, para resgatar a dívida histórica com os povos originários e contribuir para o ordenamento fundiário do país.
Mas esse marco temporal não resolve a situação, nem mesmo do ponto de vista dos proprietários rurais. A solução das pendências, com a conclusão dos processos demarcatórios em curso, é que pode superar conflitos e por fim ao sofrimento de indígenas e à instável situação dos ocupantes não indígenas. Negar o direito à terra às vítimas de esbulhos estenderia, indefinidamente, as situações de conflito. A Constituição reconhece a relação intrínseca entre os povos indígenas e seus territórios.
Veja-se a situação do Mato Grosso do Sul, que tem a terceira maior população indígena do país, várias situações de conflito e uma exígua extensão de terras demarcadas, sendo que os indígenas não dispõem, sequer, da posse efetiva dessas áreas. Eles sofrem com a herança do confinamento promovido pela política indigenista integracionista do fim do século 19 e início do 20, que removeu inúmeras comunidades das suas terras tradicionais para áreas reservadas, promoveu a titulação e a colonização das primeiras a particulares.
Por exemplo, 15 mil pessoas vivem na Reserva Indígena de Dourados, com 3,5 mil hectares, numa relação de um hectare por família, numa região em que o módulo fiscal (área mínima para a subsistência de uma família assentada pela reforma agrária) é de 30 hectares.
Nessas condições, é mais que compreensível que indígenas confinados em reservas exíguas queiram retornar aos territórios de origem, de onde vieram seus pais ou avós. Preferem enfrentar situações desiguais de conflito a perecer num lugar que não é seu, infestado de conflitos, com recordes de suicídios, miséria e marginalização. Impedir o curso das demarcações com violência, judicialização ou marco temporal, não resolve a questão e eterniza o problema. Com o aumento da população, os conflitos tendem a se agravar indefinidamente.
Dá para resolver
Por outro lado, se houver vontade política, não há porque duvidar que o processo demarcatório se conclua, como diz a Constituição. Se cinco anos seria pouco, é lamentável constatar que ele não tenha terminado 37 anos depois. Mesmo assim, dois terços das terras já têm demarcações homologadas e, apesar das situações difíceis que devem ser enfrentadas, é perfeitamente possível resolver o terço restante.
Segundo os dados do ISA, a situação jurídica atual das 799 terras indígenas é a seguinte: 535 já têm demarcações homologadas ou reservadas (ou seja, concluídas), 65 têm limites declarados pelo Ministério da Justiça, 43 estão identificadas pela Funai e aguardam a decisão do MJ sobre os seus limites. E 156 ainda estão sendo ou deverão ser identificadas por grupos de trabalho já constituídos para estudo e identificação de seus limites.
É de se supor que, entre as pendências, existam casos mais complexos e que demandam procedimentos distintos e mais apropriados para a sua solução. Boa parte delas está fora da Amazônia Legal (onde vive 51% da população indígena, em 98,2% da extensão total das terras indígenas), no centro-sul e no nordeste (com 49% da população em apenas 1,8% da extensão das terras), onde a ocupação do território nacional é mais densa e as resistências são mais fortes.
Voltando ao Mato Grosso do Sul, onde as terras indígenas tradicionais foram indevidamente tituladas pela União, ou pelo estado, é justo e necessário que os colonos sejam indenizados por terem sido oficialmente induzidos a ocupar ilegalmente essas terras. A Constituição não prevê indenização pelas terras, apenas por benfeitorias realizadas de boa-fé, mas não tratou da especificidade dessas situações, devendo o STF dispor sobre elas, para compensar terceiros e pacificar conflitos.
O tempo corre contra as melhores soluções, porque a ocupação do território nacional se adensa, sobretudo fora da Amazônia, e os conflitos se multiplicam, com mortos e feridos. Vale considerar que, depois do Amazonas, que dispõe da maior população indígena do país vivendo em áreas mais extensas, vêm a Bahia, Mato Grosso do Sul e Pernambuco, onde predominam terras exíguas ou não demarcadas. Só depois vem Roraima, o segundo estado amazônico. Urgem providências para concluir as demarcações.
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Mais de 1,3 mil Guarani Kaiowá esperam ampliar roças tradicionais e obter apoio para recuperar áreas degradadas após acordo que garante posse de Terra Indígena
*Com a colaboração de Luiza de Souza Barros
O acordo para retirar e compensar os invasores da Terra Indígena (TI) Ñande Ru Marangatu (MS) fechado no STF, no dia 25/9, em uma audiência promovida pelo ministro Gilmar Mendes, encheu de esperança mais de 1,3 mil Guarani Kaiowá. Após décadas de resistência e sofrimento, eles terão afinal garantido o direito de ocupar todo o seu território, em Antônio João, no sudoeste do Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai.
Depois da saída definitiva dos fazendeiros, a comunidade espera ampliar suas roças tradicionais e obter apoio para comercializar sua produção e recuperar áreas degradadas pelo agronegócio. Espera ainda poder ver as crianças crescerem em paz, com acesso à educação e boas perspectivas de vida.
“Nosso futuro jovem já não vai passar mais isso em Ñande Ru Marangatu, nossas crianças que estão crescendo agora e que nascerão depois deste ano de 2024 já não vão passar mais por esse conflito todo”, aposta a liderança indígena Kuña Rendy'i. “Daqui a alguns anos, vou ficar velha e quero ver nossos alunos terminando a faculdade”, complementa.
“Lá vai ter nova criança, novo jovem, nova família, junto com todos os seres que [foram] expulsos de lá. Vamos trazer todo mundo de novo”, diz uma carta dos indígenas endereçada a Mendes.
Acordo
Segundo o acordo firmado no STF, as ações judiciais sobre a TI serão extintas em todas as instâncias, inclusive a liminar de 2005 que suspendeu o decreto de homologação da área assinado pelo presidente Lula, meses antes. Mendes promoveu o entendimento na qualidade de relator desse processo (leia mais ao final da reportagem).
O governo federal terá de fazer o “pagamento imediato” de R$ 27,8 milhões pelas benfeitorias realizadas de boa-fé pelos fazendeiros. Eles receberão ainda R$ 102,1 milhões pela terra nua na forma de precatórios (um tipo de requisição judicial reconhecida como dívida do Estado). O governo de Mato Grosso do Sul discordou da obrigação de arcar com parte da indenização da terra, mas aceitou depositar em juízo R$ 16 milhões que podem vir a ser usados para esse fim.
Ainda conforme a tratativa, os invasores terão 15 dias para deixar a área após receberem pelas benfeitorias. Só depois, os indígenas poderão, então, reocupá-la. “Estamos ansiosos, sim, para quando chegarem esses 15 dias. Eu tenho certeza que quero estar no meio das pessoas, para a gente estar pulando de alegria, de choro, de tristeza [pelas mortes e o sofrimento que enfrentamos], mas principalmente pensando no futuro das crianças”, completa Rendy'i.
Polêmica
O acordo preocupa parte do movimento social em função de seus termos e da incerteza sobre suas consequências para as demarcações não concluídas em todo país. A polêmica está no fato de o governo federal ter concordado em abrir mão de confirmar a validade dos títulos de terra em mãos dos fazendeiros.
Segundo decisão do STF do ano passado que considerou inconstitucional o chamado “marco temporal” das demarcações, essa indenização cabe apenas no caso de documentos legítimos. A determinação é uma novidade: a Constituição diz que apenas as benfeitorias feitas de boa-fé devem ser indenizadas. O marco temporal não está em questão no caso de Ñande Ru Marangatu.
Trata-se de uma interpretação jurídica ruralista que restringe os direitos indígenas e pode inviabilizar as demarcações. De acordo com ela, os povos originários só teriam direito às terras que estavam em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, precisariam comprovar a disputa jurídica ou material sobre o território. A tese desconsidera o histórico de expulsões e violências contra essas populações.
A ata da audiência de conciliação realizada no STF no dia 25 diz que a União aceita pagar pela terra, “apesar de não concordar com o dever” de fazer isso. Os representantes da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) presentes na audiência consentiram com a solução negociada em razão da escalada de violência em Ñande Ru Marangatu nos últimos meses.
“Se o presidente tem terras, se o governador do MS tem terras, então que dê a estes que nos invadiram, que estão destruindo nosso teko marangatu, e os tirem de uma vez por todas de nosso tekoha”, afirma carta enviada pelos indígenas a Mendes. “Já tem um histórico de muita violência, não aguentamos mais. Está insustentável viver esta vida”, diz o texto.
A audiência foi requerida pela própria administração federal em função da gravidade da situação. Em menos de duas semanas, dois indígenas morreram: um levou um tiro de um policial e outro foi encontrado atropelado em uma estrada (leia mais abaixo).
O acordo foi homologado pelo plenário do STF, no dia 27/9, por unanimidade. Os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia reforçaram que Ñande Ru Marangatu não pode servir como referência para outros casos.
Fachin destacou que o entendimento não tem “aptidão para gerar precedente”. “Concordo, excepcionalmente, com acordo nesse caso específico, principalmente diante da concordância da comunidade Indígena em resolver questão que se arrasta há tantos anos; não se trata, porém, de solução generalizada para cumprir a Constituição e respeitar as decisões deste Tribunal”, frisou.
Fazendo referência à decisão da Corte do ano passado, Cármen Lúcia disse que seu posicionamento “não significa revisão de tese que acompanhei sobre a interpretação e aplicação das normas constitucionais sobre a matéria”.
Escalada da violência
Há quase 20 anos os Guarani Kaiowá esperam por uma solução que assegure a posse efetiva de suas terras. Cansados da omissão do governo e do Judiciário, eles conseguiram reocupar cerca de 80% da área.
Relembre: Jovem indígena é assassinado no MS em meio a escalada de violência em Terras Indígenas do povo
Mesmo estando em sua terra de ocupação tradicional, cujo reconhecimento já foi realizado pelo Estado, os Guarani Kayowá enfrentaram inúmeros atos de hostilidades e violência armada, inclusive ações policiais sem mandado judicial.
No dia 18, embora existisse determinação judicial apenas para “policiamento”, houve tentativa de reintegração de posse e um ataque da PM. O indígena Neri Ramos da Silva, 22 anos, foi assassinado com um tiro na nuca. O próprio governador do Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel (PSDB), admitiu que a bala partiu de um dos policiais.
Ainda resultado do acordo firmado no STF, a comunidade guarani kaiowá teve acesso liberado à área ainda invadida pelos fazendeiros, no dia 28, para realizar um ritual mortuário em homenagem ao jovem indígena. Com proteção da Força Nacional, eles fizeram o chamado “batismo da cruz” de Neri no local de sua morte.
Ainda no dia 23, o jovem Guarani Kaiowá Fred Souza Garcete, de 15 anos, foi encontrado morto às margens rodovia MS-384, limítrofe à TI. Como já aconteceu em outros casos no Mato Grosso do Sul, existe a suspeita de que ele possa ter sido atropelado deliberadamente como uma forma de disfarçar um assassinato.
Pelo menos mais seis indígenas foram assassinados em 40 anos no mesmo território. Há ainda casos que podem guardar relação com os conflitos pela terra, como o de suicídios. “A terra tradicional de Ñande Ru Marangatu é a memória de cada lideranças que foram expulsas”, lamenta Kuña Rendy’i.
Ocupação de séculos
Em 2001, os 16 invasores da TI entraram com uma ação na Justiça Federal, contestando a demarcação em curso, sob a alegação da inexistência de ocupação tradicional indígena e de que fazendas estariam ali desde meados do século XIX.
Segundo o relatório de identificação e delimitação da Funai, no entanto os Guarani Kaiowá e Ñandeva habitam a região "literalmente há séculos" e nunca se afastaram de lá. Ainda de acordo com o documento, o processo de expropriação dos indígenas e de titulação dos colonos não indígenas pelo governo estadual começou nos anos 1920 e intensificou-se nos anos 1950.
A TI Ñande Ru Marangatu foi homologada por decreto presidencial em março de 2005. Poucos meses depois, em mandado de segurança, o então ministro do STF Nelson Jobim suspendeu a demarcação. Jobim aposentou-se da Corte em 2006 e o processo foi assumido por Gilmar Mendes. Na decisão final que homologa o acordo de agora, o ministro revoga a liminar de 2005, julga extinto o processo original e restabelece os efeitos do decreto presidencial que homologa a demarcação.
Terra guarda biodiversidade e memória guarani kaiowá
Garantir a demarcação da TI Ñande Ru Marangatu é importante também pelo papel que a área desempenha na conservação da biodiversidade e na salvaguarda do patrimônio cultural do povo Guarani Kaiowá.
Com 9.317 hectares, a terra está localizada no bioma Cerrado, na Bacia do Rio Apa, que compõe as cabeceiras do Pantanal. Sua paisagem é marcada por matas de galeria, nascentes, rios e morros.
“[Essa é uma] ecorregião de Cerrado muito importante, porque a fitofisionomia dela tem muitas formações florestais, diferente do restante dos cerrados que a gente encontra no restante do Brasil”, explica o pesquisador Gustavo Costa do Carmo, da Rede de Apoio e Incentivo Socioambiental (RAIS). Em sua avaliação, o relevo montanhoso e as formações florestais densas dificultaram o avanço da agricultura mecanizada na região, nos anos 1960 e 1970, tipo de atividade que acabou prevalecendo no restante dos territórios guarani kaiowá e ñandeva por meio das invasões.
Ainda assim, Ñande Ru Marangatu sofre com o desmatamento e a degradação provocados pelos fazendeiros. Também é pressionada pelo arrendamento de terras e o narcotráfico. No primeiro semestre de 2024, a área foi uma das TIs que mais sofreu com as queimadas no estado, com mais de 1,6 mil hectares destruídos, o equivalente 18% de sua área total, segundo dados do MapBiomas.
O território é considerado um dos centros cosmológicos do povo Guarani Kaiowá. “Cada morro tem um nome em Guarani, que nossos anciãos chamavam. O Ñande Ru Marangatu é mesmo [um] memorial para nós”, explica Kuña Rendy’i.
Junto de outras sete TIs na mesma região, Ñande Ru Marangatu integra um amplo território guarani chamado de Cerro Marangatu que no passado estendia-se por cerca de 400 mil hectares (ou 560 mil campos de futebol), segundo estimativas de Carmo.
“Antes dos anos 1950, existiam várias aldeias ao redor do Cerro Marangatu”, conta ele, lembrando a conexão da área com a região de Yvy Pyte, o “umbigo do mundo” do povo Guarani, localizado do outro lado da fronteira, no Paraguai. Cerro Marangatu dá nome também a uma montanha que os indígenas descrevem como a casa de um poderoso “espírito-dono”, Ava Popiry, e o lugar onde são guardados seus instrumentos xamânicos.
Hoje, mesmo cercado pelo agronegócio, esse conjunto de TIs conectadas protege aproximadamente 14 mil hectares, abrigando ainda formações geológicas e sítios arqueológicos importantes. É o caso da montanha Isyka, em Ñande Ru Marangatu, onde são encontradas inscrições rupestres e cerâmicas que, segundo pesquisas, permitem estimar uma presença indígena de 800 anos.
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Território do povo Munduruku é quarta área declarada na atual gestão Lula e um dos mais pressionados e ameaçados pelo garimpo no país
Texto atualizado em 26/9/2024, às 19:43
*Com a colaboração de Luiza de Souza Barros
Na tarde desta quarta (25/9), o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou a portaria declaratória da Terra Indígena (TI) Sawré Muybu (PA), com pouco mais de 178 mil hectares, o equivalente a aproximadamente 255 mil campos de futebol.
Agora declarada de posse permanente do povo Munduruku, a área fica na região dos municípios de Itaituba e Trairão, no sudoeste do Pará, um dos epicentros do garimpo ilegal na Amazônia (veja mapa abaixo). A TI é uma das mais pressionadas e ameaçadas no país pela mineração ilegal, o desmatamento e o roubo de terras públicas.
“Foi uma luta e tanto, de tantas ‘autodemarcações’. Foi muita pressão no próprio MJ [Ministério da Justiça], na Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], de ocupação, de dizer que o território era nosso”, comemorou emocionada Alessandra Korap, liderança do povo Munduruku, num post nas redes sociais.
Em função da demora no reconhecimento oficial da área, nos últimos anos os próprios indígenas realizaram “autodemarcações” com o objetivo de pressionar o governo a seguir com o processo administrativo formal.
“É um momento histórico! Agora, a terra é de vocês”, disse Lewandowski, logo após assinar a portaria, ao lado de dez lideranças indígenas em Brasília. O ministro ressaltou que a medida é importante para proteger a TI dos criminosos.
“O ato de hoje tem um aspecto ainda mais relevante porque estamos falando de uma localidade que, nos últimos anos, infelizmente, se tornou símbolo do garimpo ilegal e da extração ilegal de madeira. O garimpo ilegal também tem impactado a região com a contaminação por mercúrio, afetando, principalmente, mulheres e crianças”, afirmou.
A portaria declaratória é um dos passos mais importantes do processo de demarcação. Agora, os limites da TI poderão ser demarcados fisicamente, em seguida homologados pelo presidente da República e, afinal, registrados em cartório, cumprindo todo o rito administrativo.
Esta é a quarta portaria assinada pela pasta da Justiça na gestão atual de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência. No início do mês, Lewandowski havia declarado as TIs Apiaká do Pontal e Isolados (MT), Maró e Cobra Grande (PA). Antes disso, o último ato desse tipo havia sido publicado em 2018, no governo de Michel Temer. Já o próprio Lula assinou os decretos de homologação de outros dez territórios.
O povo Munduruku espera pela demarcação há quase 20 anos. Ela foi iniciada pela Funai em 2007. A definição dos limites foi feita em 2016 e a TI estava pronta para ser declarada desde 2019, mas o processo foi paralisado em meio à suspensão geral dos procedimentos demarcatórios determinada por Jair Bolsonaro.
Garimpo e desmatamento
Nos últimos anos, a TI Sawré Muybu sofreu com o desmatamento, fruto sobretudo do garimpo. A aprovação dos limites, em 2016, ajudou a diminuir as invasões, mas a situação voltou a piorar no governo Bolsonaro. Além de seguir defendendo o garimpo ilegal, fazer vista grossa às invasões de áreas protegidas e paralisar as demarcações, na época a administração federal sabotou e esvaziou as operações de fiscalização ambiental na Amazônia.
A Floresta Nacional de Itaituba II, uma Unidade de Conservação federal, está sobreposta a aproximadamente 85% da extensão da TI Sawré Muybu, mas nem isso foi suficiente para conter a ação de garimpeiros e madeireiros.
Em sintonia com a evolução da taxa geral do desmatamento na Amazônia, a devastação na TI saltou de 25 hectares, em 2018, para 146 hectares, em 2020, um crescimento de 484%. Dos 1,8 mil hectares destruídos até hoje no território indígena, cerca de 27% foram devastados no governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022.
Em 2020, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, visitou a região em meio a uma operação de fiscalização contra os invasores dos territórios indígenas. Ele foi recebido em Jacareacanga por líderes do garimpo e fez declarações defendendo a legalização da atividade. Em 2022, por sua vez, os garimpeiros foram recebidos no Palácio do Planalto, junto com políticos locais, para discutir o mesmo assunto.
As condições para o aumento da violência contra as lideranças indígenas estavam criadas. Em março de 2021, a Associação de Mulheres Indígenas Munduruku (Wakomborum), em Jacareacanga, na mesma região, foi depredada, queimada e saqueada. Em maio do mesmo ano, a casa da Maria Leusa Kaba Munduruku, coordenadora da Wakomborum, foi incendiada. Maria Leusa denunciava a ação dos garimpeiros e o crime foi uma retaliação a uma operação de fiscalização feita contra eles dias antes.
Para se ter uma ideia dos impactos do garimpo, um compilado de pesquisas realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2021, concluiu que 60% da população na TI Sawré Muybu estava contaminada com níveis de mercúrio acima do estipulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Obras de infraestrutura
A demarcação pode ter repercussões ainda incertas no andamento de obras de infraestrutura prioritárias para o governo federal. Desde os anos 2010, os Munduruku resistem aos projetos de instalação de hidrelétricas na região. Em função de sua luta, o licenciamento da usina de São Luís do Tapajós chegou a ser arquivado pelo Ibama. Neste ano, porém, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aceitou um pedido da Eletrobrás para retomar o empreendimento.
Mais recentemente, os indígenas lutam para ser consultados adequadamente sobre a construção e os impactos socioambientais da ferrovia Ferrogrão, entre Sinop (MT) e Itaituba (PA). Em julho, as organizações Munduruku retiraram-se, em protesto, do Grupo de Trabalho criado pelo governo para discutir o empreendimento. Elas alegam que o governo avançou nos estudos sobre a obra e a Aneel a incluiu nos leilões que serão realizados em 2025 sem consultá-los.
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Durante um mês, quinze mulheres de oito regiões participaram do curso
Quinze mulheres indígenas de Roraima participaram de uma formação para se tornarem eletricistas prediais. O curso de 120 horas durou um mês e habilitou as participantes para lidar com atividades e instalações elétricas de baixa tensão.
Elaine Martins Constantino, de 20 anos, foi uma das representantes da região do Baixo Cotingo. Moradora da comunidade Natureza, da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, ela afirma que nunca pensou na profissão de eletricista até ter a oportunidade de fazer o curso. A formação mudou a sua forma de enxergar a participação de mulheres em atividades vistas como masculinas.
“Nós mulheres somos, sim, capazes de ser eletricistas, não é algo que serve apenas para homens, mas para qualquer um que deseje. Esse curso foi muito importante e me fez entender isso. Estou repassando isso à minha comunidade para que outras pessoas se interessem por estas oportunidades”, explicou.
Além da região do Baixo Cotingo, havia mulheres representando as regiões de Amajari, Sumuru, Murupú, Tabaio, Serra da Lua, Alto Cauamé, Serras e Raposa. Duas casas foram alugadas na cidade de Boa Vista, de 18 de julho a 18 de agosto ‒ tempo de duração do curso, para hospedar as mulheres.
Kessya Rodrigues da Costa, de 28 anos, é moradora da TI Malacacheta. Mãe de três filhos, ela pôde conviver com outras mulheres, com idades entre 20 e 35 anos, e observar outras realidades.
“Ficar um mês fora da comunidade, vivendo na cidade, foi bem estranho porque não sou acostumada a sair da comunidade e, ainda mais, para passar tanto tempo fora. O aprendizado foi para além do curso. Convivi com outras 14 mulheres de outras comunidades e aprendi coisas que não sabia. Mudou a minha visão”, afirmou.
Apesar de nunca ter pensado em ser eletricista, Kessya afirma que fixou o conhecimento e já retornou à comunidade observando o que podia fazer nas casas do local.
“O que eu sei é o básico, mas com isso já consigo fazer a instalação de uma casa. E isso é muito gratificante porque nunca tinha visto uma mulher eletricista trabalhando com fiação”, disse.
Teoria e Prática
Durante os 30 dias, as mulheres tiveram aulas que mesclavam teoria e prática. Durante a tarde, elas ficaram livres para descansar, revisar os conteúdos, participar de aulas de reforço ou fazer qualquer outra atividade.
O curso para mulheres indígenas eletricistas foi uma parceria entre o Conselho Indígena de Roraima (CIR), Instituto Socioambiental (ISA) e Centro Tecnológico Solares. A participação do centro tecnológico garantiu às mulheres um certificado que as habilita para prestar serviços para pessoas físicas e jurídicas.
“Eletricista é uma profissão aparentemente masculina. É até difícil contratar alguém e quando chegar na sua casa ser uma eletricista mulher. Então, eu acho que essa foi mais uma barreira que elas romperam durante o curso, de mostrar que não é um espaço só para homens e que elas são perfeitamente capazes de fazerem o trabalho de eletricista. Até as botas de eletricistas que tivemos que comprar foi difícil, não havia tamanhos pequenos”, explica Ciro Campos, analista do ISA e um dos responsáveis pela formação.
Conforme Campos, as últimas aulas foram de atividades práticas na comunidade indígena Canauanim. As estudantes precisaram fazer instalações elétricas na Casa de Produção das Mulheres do CIR. O local vai abrigar diversas frentes de produção, como panificação e artesanato, e precisava de uma instalação elétrica adequada para iniciar as atividades.
“Achei muito interessante a prática na Casa de Produção das Mulheres. Tudo o que vimos durante um mês, pudemos colocar em prática e deu tudo certo com o nosso trabalho. Fizemos as instalações elétricas nesta casa”, disse Elayne.
Com o fim do curso, uma agenda de atividades já está montada para manter a formação das mulheres. Edificações devem ser mapeadas e as indígenas eletricistas serão contratadas para fazer as instalações elétricas. Em breve, está prevista uma visita técnica das eletricistas à Roraima Energia – empresa responsável pela energia elétrica no estado – e também uma formação específica em energia solar aplicada à irrigação.
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Ato foi publicado no Dia da Amazônia (5/9). Última portaria declaratória foi editada pela pasta há seis anos, em 2018
Na tarde da última quinta-feira (5/9), o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou as portarias declaratórias de três Terras Indígenas (TIs): Apiaká do Pontal e Isolados (MT), dos povos Apiaká, Isolados do Pontal e Munduruku; Maró (PA), dos povos Arapium e Borari; e Cobra Grande (PA), dos povos Arapium, Jaraqui e Tapajó (veja mapa abaixo). No total, as áreas abrangem o equivalente a 1,4 milhão de campos de futebol ou duas vezes o territorio do DF.
A última declaração de TI foi feita pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) há seis anos, em 2018. Os estudos de identificação e delimitação das três áreas declaradas agora foram aprovados há mais de dez anos e levaram, em média, 12,6 anos para avançar para as etapas seguintes da regularização.
Já para as demais TIs que ainda aguardam portaria declaratória o tempo de espera segue aumentando. O período médio para a declaração de uma área chegou a ser de dois anos e meio no primeiro mandato do presidente Lula (2003 a 2006), quando o MJ declarou 30 territórios.
A edição de portarias já caminhava em ritmo lento desde o último mandato de Dilma Rousseff (2015-2016), quando 15 TIs foram declaradas. Torquato Jardim, ministro da Justiça de Michel Temer (2016-2018), editou somente três atos. No governo Bolsonaro, quando pela primeira vez desde a Constituição nenhuma TI foi declarada, a média de tempo saltou para 12 anos.
“Um dos casos mais emblemáticos é o da TI Barra Velha do Monte Pascoal, no sul da Bahia, onde a espera de mais de 16 anos pela portaria declaratória tem ensejado conflitos violentos, apesar da existência de decisões judiciais favoráveis ao povo indígena pataxó”, avalia o pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) Tiago Moreira.
Segundo os dados monitorados pelo ISA, existem, no total, 44 TIs já identificadas pela Funai aguardando a declaração pelo Ministério da Justiça, além de 65 terras à espera da homologação pela presidência da República. No total, existem 265 TIs com processo de demarcação em andamento.
Indígenas comemoram
Miracildo Silva da Conceição, do povo Tapajó, representante do Conselho Indígena da Terra Cobra Grande (COINTECOG), conta que o fim desse longo processo veio a partir de um convite para uma reunião no dia da primeira audiência pública de conciliação sobre a chamada Lei do Marco Temporal (14.701/2023). Com os ataques a comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul (MS), entretanto, o encontro foi reagendado para a última quinta-feira.
“A gente pensou que era uma simples reunião. Na verdade, estava tudo certo para fazer a assinatura da [portaria] declaratória”, afirmou. “Para nós foi um momento de alegria, teve toda uma cerimônia de assinatura, presenciamos o ministro assinando. Saímos do Ministério da Justiça de alma lavada e dever cumprido”, celebrou.
Eliane Xunakalo, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), também comemorou a decisão, fruto de uma forte pressão do movimento indígena, além de idas e vindas no MJ, na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e no Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
“A gente vê como resultado de muitas articulações, vê com bons olhos e espera que os outros territórios que estão aguardando também saiam e que a gente consiga encontrar alternativas para outros processos que estão no início como um grupo de trabalho, os que estão sub judice também, para que os nossos povos tenham os territórios demarcados, para que nós possamos ter o nosso direito reconhecido pelo Estado”, defendeu.
Assista ao vídeo:
Em uma publicação do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita), o cacique-geral da TI Maró, Odair José Alves de Souza, conhecido como Dadá Borari, do povo Borari, também celebrou a decisão, mas relembrou que o processo de regularização precisa ser concluído. “Hoje, a Terra Indígena Maró só resta comemorar essa vitória e festividades”, afirmou.
Por meio das portarias, as três áreas são declaradas como de posse permanente e exclusiva dos povos que as habitam tradicionalmente e aguardam agora delimitação física da área e a homologação pela presidência da República, etapa final do processo demarcatório.
“Essas três Terras Indígenas declaradas têm importância fundamental para o equilíbrio socioambiental dessa região da Amazônia. Elas estão situadas em diferentes partes da Bacia do Tapajós, um rio que sofre com inúmeras pressões, provocadas pelo avanço da fronteira agrícola, com a construção de hidrelétricas e também com a mineração ilegal”, explica Moreira.
Seis anos sem declarações
Lewandowski herdou um passivo do ex-ministro Flávio Dino de ao menos 28 processos que foram encaminhados pela Funai para declaração, segundo informações do próprio órgão indigenista. Entre eles, onze estariam na lista do MJSP para declaração, de acordo com reportagem do Infoamazonia, incluindo dois encaminhados na semana passada. As TIs que ainda aguardam suas portarias são: Sawré Muybu (PA); Sambaqui (PR); Djaiko-aty (SP); Amba Porã (SP); Promorim (SP); Ka’aguy Mirim (SP); Ypol Triunfo (MS); Xakriabá (MG) e Pindoty – Araça-Mirim (SP).
“As portarias assinadas mostram que é possível fazer mais, apesar do cenário de conflito político e do grande passivo de áreas à declarar. Além das três TIs, há outras situadas em áreas que já são da União, e em sobreposição com Unidades de Conservação federais”, afirma o pesquisador do ISA.
Esse é o caso da TI Sawré Muybu. Sobreposta a uma Unidade de Conservação, a área sofre com invasões de garimpeiros e madeireiros. “Não deveria existir entraves para declarar essa área. A segurança da Unidade de Conservação a qual está sobreposta depende da própria posse plena do território pelos Munduruku. Os povos indígenas têm sido os melhores guardiões do patrimônio ambiental, de nossas florestas”, explica.
Em 2023, 14 TIs que estariam prontas para a homologação foram encaminhadas para assinatura do presidente Lula, mas, apesar da expectativa de que as homologações acontecessem ainda no primeiro mês de governo, isso não se cumpriu. Até o momento, dez áreas foram homologadas nesta terceira gestão do petista.
Uma das razões para o entrave nas demarcações, conforme já apontou o movimento indígena, é a aprovação da Lei do Marco Temporal, no fim de 2023. Ao longo do ano, tanto a Funai quanto o MJSP afirmaram estar recuando no andamento dos processos em razão da norma. Já o presidente Lula frustrou o movimento indígena ao demarcar apenas duas das seis TIs prometidas para abril de 2024.
“Quero que vocês saibam que essas terras já estão prontas. O que nós não queremos é prometer para vocês uma coisa hoje e amanhã você ler no jornal que a Justiça tomou uma decisão contrária. A frustração seria maior”, afirmou na ocasião.
Conheça as Terras Indígenas declaradas
Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados
A área declarada como de posse permanente dos povos Apiaká, Munduruku e grupos isolados pelo MJSP possui 982,3 mil hectares. Localizada em Apiacás, no Mato Grosso, a TI teve seu processo de demarcação iniciado em 2008, quando o primeiro Grupo Técnico para estudos de identificação e delimitação foi constituído. O reconhecimento da área pela Funai aconteceu três anos mais tarde, em 2011.
Sobreposta parcialmente ao Parque Nacional do Juruena, a área declarada teve o andamento da demarcação paralisado por anos em razão de um conflito de interesses entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Funai. Com a morosidade no andamento dos processos, o Ministério Público Federal (MPF) em 2013, chegou a instaurar uma Ação Civil Pública e um Inquérito Civil Público para que fossem adotadas as medidas administrativas necessárias para finalizar a demarcação.
A região em que a TI está localizada, na fronteira entre Mato Grosso, Pará e Amazonas, sofre intensa pressão das frentes de expansão do agronegócio e da atividade garimpeira. Segundo o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Funai, existem ao menos cinco imóveis sobrepostos à TI.
Além disso, uma outra pressão sobre o território se dá a partir da construção da hidrelétrica São Manoel, localizada no Rio Teles Pires, (MT e PA), em 2014. No mesmo ano, o procurador-geral da República à época, Rodrigo Janot, fez um requerimento ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela suspensão do licenciamento ambiental da usina para garantir a proteção aos isolados cujo conhecimento pela Funai já se dava desde os anos 1980.
Apesar da Advocacia Geral da União (AGU) reconhecer a regularidade da usina, o MPF entrou com ao menos sete ações para barrar o funcionamento do empreendimento por falta do cumprimento de condicionantes e medidas obrigatórias para compensação aos danos causados às comunidades atingidas. A usina segue ativa.
Segundo o relatório da Funai, os Apiaká acreditam que os indígenas em isolamento com os quais compartilham o território sejam, na verdade, parentes que optaram pela vida autônoma em razão dos violentos contatos que culminaram em epidemias e mortes no início do século XX.
Terra Indígena Maró
Para os povos Borari e Arapium de Santarém (PA), foi declarada como de posse permanente a área de 42,3 mil hectares, cujos estudos para identificação também foram iniciados em 2008 e aprovados em 2011 pela Funai.
O MPF também atuou na região, a partir de Ação Civil Pública contra decisão judicial que havia declarado as duas etnias como “inexistentes”. A sentença foi anulada em 2016.
Segundo o RCID, nos últimos quatro séculos os Arapium e Borari foram impactados por diferentes frentes de expansão econômica, forçando os povos que sobreviveram aos primeiros contatos a estabelecerem relações marginalizantes com os colonizadores. Com a Constituição de 1988, em que se reconhece um Estado pluriétnico e se asseguram os direitos aos povos indígenas, é que essas populações puderam reconstruir suas narrativas de pertencimento e sua própria história.
Ainda segundo o relatório, “a integração dos indígenas na sociedade envolvente através da comercialização de produtos como a farinha é descrita pelos cronistas que passaram pelo Baixo Tapajós nos séculos XVII e XVIII, e permanece até os dias atuais. Ressalta-se que a diferença latente para os Borari e os Arapium nessa relação interétnica é o modo coletivizado de uso da terra e de sua produção agrícola, muito distinta das que estão sendo requeridas por outras populações vizinhas do oeste paraense.”
As populações da TI Maró seguem a tradição de produção das suas roças, nela baseando sua principal atividade econômica. A relação com a floresta, a caça, a pesca e a coleta para fins alimentares e medicinais continuam sendo atividades essenciais para sua existência e se baseiam na troca com os seres que habitam a floresta.
Terra Indígena Cobra Grande
Foi em 2008 que os estudos para identificação dos 8,9 mil hectares, agora declarados como de posse permanente dos povos Arapium, Jaraqui e Tapajó pelo MJSP, foram iniciados.
Segundo o RCID, os povos Arapium, Jaraqui e Tapajó sofreram um processo, iniciado por volta de 1800, de tentativa de apagamento dos modos tradicionais e de seu reconhecimento como indígenas. Neste contexto, apenas nos anos 1970 que as comunidades passaram a requerer - tardiamente - seus direitos.
“A continuidade da história indígena no vale do rio Arapiuns se manifesta, sobretudo, nas dimensões elementares de seu modo de vida atual. É evidente tanto em sua economia tradicional mista quanto em suas formas de organização sociopolítica e cosmológica”, afirma o relatório.
Entre as pressões contra o território, está a construção da rodovia estadual PA-257, em 1980. Situada em área limítrofe, a rodovia intensificou o avanço irregular de fazendas de gado, extração madeireira e pequenos loteamentos.
Em 2013, as comunidades começaram a construir um consenso em torno da proposta de delimitação e a construir a implementação de um plano de bem-viver, buscando a proteção e a gestão sustentável do território, enquanto aguardavam o reconhecimento oficial, conforme aponta o relatório. Desde 2015 o processo não andava.
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O presidente e sócio-fundador do ISA, Márcio Santilli, comenta o ato do ministro da Justiça de declarar três territórios indígenas após seis anos desde a última vez em que isso aconteceu
Artigo publicado originalmente no site do Mídia Ninja, em 9/9/2024
Após seis anos de abstinência, o Ministério da Justiça declarou de posse permanente de seus habitantes indígenas e aprovou a definição dos limites de três Terras Indígenas: Maró (MT), dos povos Arapium e Borari; Cobra Grande (PA), dos Arapium, Jaraqui e Tapajó; e Apiaká do Pontal e Isolados (MT), dos Apiaká, Munduruku e grupos isolados.
A edição da portaria ministerial de declaração representa a tomada de decisão do governo sobre os limites que devem ser demarcados. Agora, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) poderá contratar os trabalhos de demarcação física dessas áreas, com a abertura de picadas, a fixação de marcos e de placas. Os limites demarcados serão digitalizados e vão constar dos decretos de homologação, que precisam ser assinados pelo presidente da República (entenda o processo de demarcação).
Na análise de mais de 20 processos de Terras Indígenas identificadas pela Funai, que já passaram pelo período de contraditório e esperam por decisão ministerial, essas três foram consideradas como tendo menor potencial de conflito e menos implicações para questões específicas que estão sendo discutidas no processo de “conciliação” judicial envolvendo as ações sobre a inconstitucionalidade da chamada Lei do Marco Temporal (14.701/2023), que restringe os direitos territoriais indígenas.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou as portarias declaratórias na presença de representantes dos povos das referidas terras. O ministro quis sinalizar que, apesar dos questionamentos políticos e judiciais que as envolvem, as demarcações não estão paralisadas. Antes da assinatura, Lewandowski informou o ministro Gilmar Mendes, relator das ações sobre o tema no STF.
As três áreas estão na Amazônia Legal. Segundo o ministro da Justiça, não se aplica a esses casos a tese do marco temporal, que veda demarcações onde os indígenas não estivessem ocupando efetivamente as terras em 1988. Por isso, ele entendeu que não seria o caso de esperar pela conclusão do processo de conciliação que ocorre no STF, conduzido por Mendes.
Tapajós
Apiaká do Pontal fica no extremo norte do Mato Grosso, na fronteira tríplice com Pará e Amazonas, onde os rios Juruena e Teles Pires juntam-se para formar o Tapajós. É uma terra com notável beleza cênica e sítios arqueológicos, parcialmente sobreposta ao Parque Nacional do Juruena.
As outras duas Terras ficam na bacia do Rio Arapiuns, afluente do Tapajós. Além da importância para os povos indígenas que as ocupam e esperam pela demarcação há muitos anos, a delimitação dessas terras representa um forte alento para a sustentabilidade futura da bacia do Tapajós, muito impactada por hidrelétricas, o roubo de terras públicas e garimpos predatórios. Nas palavras do indigenista Ivar Busatto, da Opan, da Operação Amazônia Nativa: “Não é pouco. É vitória maior!”
Era esperada a edição de uma quarta portaria declaratória, da Terra Indígena Sawré Muybu, do povo Munduruku, também situada no Tapajós, mais próxima a Itaituba (PA), capital regional do garimpo predatório. O Ministério da Justiça não informou o motivo dessa exclusão.
COP-30
Os atos do ministro da Justiça reforçam a estratégia do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), de fortalecer as políticas socioambientais no estado e atrair investimentos, com vistas à realização da COP-30, conferência da ONU sobre mudança do clima, em Belém, em 2025. O estado avança na criação de reservas extrativistas, na titulação de quilombos e na inclusão dos extrativistas, quilombolas e indígenas no programa estadual de REDD+, de compensação pela redução do desmatamento.
Os atos ministeriais também reafirmam a maior facilidade relativa no reconhecimento de Terras Indígenas na Amazônia Legal, onde vive 51% da população indígena e está 98% da extensão das Terras Indígenas do país. Assim como ocorre com a destinação de terras para outros fins socioambientais, mais difícil no centro-sul e no nordeste do país.
Com a publicação das portarias no Diário Oficial da União, o placar da situação jurídica das terras indígenas no Brasil, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), ficou assim:
HOMOLOGADAS E RESERVADAS (processo concluído) — 534
DECLARADAS — 65
IDENTIFICADAS — 44
EM IDENTIFICAÇÃO — 149
COM RESTRIÇÃO DE USO (para grupos isolados) — 6
TOTAL — 798
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Três dos principais especialistas em Direito Constitucional do país concordam que não cabe uma “conciliação” sobre o direito indígena à terra
Texto atualizado em 7/9/2024, às 12:00
No último dia 29, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) – entidade nacional representativa dessas populações – resolveu se retirar da comissão de “conciliação” sobre o chamado marco temporal da demarcação das terras indígenas. O colegiado foi instituído pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes.
Foi um protesto dos indígenas pelo que consideraram pressões e violações de seus direitos ocorridas nas duas audiências realizadas até agora pela comissão. A próxima está prevista para acontecer nesta segunda (9/9) – sem a sua presença.
Até o início dos trabalhos, em 5 de agosto, os objetivos e as regras do processo não haviam sido informados claramente. Só então, foi comunicado que as decisões poderiam ser tomadas por maioria. O problema é que a Apib era minoria, com só seis representantes, de um total de 24.
A entidade também ficou sabendo que, se decidisse não participar das atividades, poderia ser substituída pela Fundação Nacional Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério do Povos Indígenas (MPI), o que vai contra a Constituição. A Carta de 1988 assegura aos povos originários o direito de acionar a justiça de forma autônoma.
Ato contínuo, parlamentares ruralistas que participam da instância de mediação sugeriram substituir a Apib por outras organizações indígenas menos representativas.
Mendes é relator das ações que questionam a Lei 14.701/2023, que prevê o marco temporal e foi aprovada pelo Congresso em retaliação à declaração do STF de inconstitucionalidade dessa interpretação jurídica ruralista, em setembro de 2023. A Apib é uma das autoras das ações, parte envolvida diretamente.
Segundo o marco temporal só teriam direito às suas terras os povos originários que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese ignora as expulsões e violências cometidas contra essas populações, em especial nas últimas décadas. Na prática, pode inviabilizar as demarcações por questionamentos administrativos ou judiciais.
Três dos maiores especialistas em Direito Constitucional do país ouvidos pela reportagem do Instituto Socioambiental (ISA) avaliam que a decisão de criar a comissão, seu funcionamento até agora e sua continuidade sem os indígenas – todas determinações de Mendes –, são legalmente incabíveis.
Leia abaixo os principais trechos das entrevistas com os professores Oscar Vilhena, da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), Daniel Sarmento, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Marcelo Neves, da Universidade de Brasília (UnB) (saiba mais sobre os três juristas no quadro ao final do texto).
Decisão de conciliar
Os três juristas defendem unanimamente ser descabida uma conciliação nesse caso, entre outras razões, porque o STF tomou recentemente uma decisão sobre o assunto e porque estão em jogo direitos fundamentais e de minorias, como o direito à terra dos povos originários previsto na Constituição.
“Desde o primeiro momento, manifestei minha perplexidade, pois, tendo o Supremo declarado a inconstitucionalidade do marco temporal, não há porque engajar-se em um processo de conciliação em que necessariamente a flexibilização dos direitos indígenas está em pauta”, opina Oscar Vilhena.
Marcelo Neves acredita que, antes da decisão do ano passado, em tese um instrumento de mediação poderia ser usado, mas não depois dela. “Na medida em que, não só numa interpretação de juristas, mas o próprio órgão oficial, que decide vinculantemente, determinou que a Constituição estabelece esse direito [indígena à terra], direito fundamental ou direito de minorias, qualquer que seja o uso, evidentemente não cabe conciliação”, aponta.
Daniel Sarmento ressalta que o problema não é simplesmente a possibilidade de o STF mudar de posição, já que a jurisprudência do próprio tribunal prevê situações como essa. “É possível que o Supremo decida uma coisa e, tempos depois, o Congresso decida num outro caminho, numa outra direção, e o Supremo seja forçado a reexaminar e mude de ideia? É possível”, explica.
“Agora, isso pressuporia o quê? Que nesse ínterim tivesse passado um tempo, os fatos tivessem mudado, tivesse mudado alguma questão nos valores, nos direitos etc. Só que a lei que estabeleceu o marco temporal foi literalmente aprovada no mesmo dia em que o STF terminou o julgamento do marco temporal. Então, óbvio que não houve uma mudança. O que houve foi uma reação de uma maioria contra o Supremo defendendo os direitos de uma minoria”, comenta.
O professor da UERJ entende que processos de mediação são instrumentos positivos e bem-vindos para dirimir conflitos judiciais, mas não podem ser aplicados indiscriminadamente. “Pela própria Constituição, os direitos territoriais indígenas são indisponíveis e não admitem nenhum tipo de conciliação, renúncia, nada desse gênero.”
Neves critica ainda o fato de Gilmar Mendes ter instituído a conciliação de forma monocrática (unilateral), sem levar o assunto ao plenário da Corte e desconsiderando a manifestação coletiva dos ministros do ano passado. “[É] uma postura de desrespeito em relação ao próprio órgão que tomou a decisão”, afirma.
Regras Polêmicas
Os três especialistas também concordam que as regras dos trabalhos impostas por Mendes, como decisões por votação e a continuidade das atividades sem a Apib, também não têm consistência jurídica.
“Me parece esdrúxulo essa solução de uma decisão por maioria. Porque uma decisão por maioria implica que o processo não é conciliatório. É um processo decisório de caráter político, de certa maneira, na medida em que vai se discutir qual a maioria prevalece”, argumenta Neves.
Ele também defende que a possibilidade de substituição da Apib nas atividades pela Funai, o MPI ou outra organização indígena seria uma afronta aos direitos dos povos originários.
“Um órgão oficial não pode substituir uma entidade representativa dos interesses dos povos indígenas, quer dizer, não tem nenhum sentido essa substituição. A escolha de outra entidade [indígena] é complicada, porque o próprio Supremo reconhece a Apib como instituição que é representativa dos povos indígenas”, lembra. “Me parece que esse é um casuísmo, evidentemente para enfraquecer a demanda dos povos indígenas pela afirmação dos seus direitos”, critica.
Continuidade da conciliação
Neves é categórico ao afirmar que a saída dos indígenas inviabiliza a comissão. “Me parece que essa conciliação se torna totalmente inconstitucional e ilegal, de forma definitiva”, sentencia. “Acho que é totalmente absurda a continuidade dessa comissão, sem a disposição dos povos indígenas de conciliar nos termos estabelecidos pelo ministro Gilmar Mendes, à luz de uma lei que contraria o direito fundamental dos indígenas às suas terras”, continua.
Ele acredita ainda que as normas de funcionamento da mediação vão contra a própria ideia de conciliação. “Nesse contexto da linguagem do voto da maioria e de outras nuances que se apresentam dentro da comissão, ela não tem sequer o caráter conciliatório”, ressalta.
Sarmento vai na mesma direção: “[Nesse caso] você não pode conciliar por uma questão até de definição – sem que o titular do direito aceite o procedimento de conciliação”.Para ele, não há base legal para uma “conciliação contra a vontade do titular do direito, o que é inadmissível em qualquer conciliação”.
Condução do processo
Os indígenas criticaram duramente a atuação do juiz auxiliar indicado por Mendes para conduzir os trabalhos, Diego Viegas Veras. Para a Apib, ele impôs condições “inaceitáveis” ao debate. Os juristas ouvidos pelo ISA também contestam a postura de Veras.
“Processos de conciliação pressupõem engajamento e confiança das partes. Infelizmente, o juiz responsável não tem sido capaz de demonstrar a imparcialidade necessária para conduzir um processo como esse”, critica Vilhena.
“Acho que a Apib tem sido desprezada. Muitas vezes, em algumas posições dos juízes auxiliares, de certa maneira tem sido humilhada nessa comissão. Me parece que de alguma forma vem sendo tratada em linguagem tutelar”, corrobora Neves.
Proteção de minorias
Os três especialistas chamam atenção para o fato, desconhecido ou não entendido por muitas pessoas, de que a proteção dos direitos de minorias é uma das principais funções das cortes constitucionais, como o STF. Eles reforçam que esse é exatamente o caso dos povos originários no Brasil.
“É tudo heterodoxo e perigoso. O papel do Supremo nessa matéria, à luz do que dispõe a Constituição, é proteger direitos fundamentais do grupo vulnerabilizado”, explica Sarmento. “Você não pode conciliar quando você está discutindo direitos de grupos minoritários”, acrescenta.
Tanto ele quanto Marcelo Neves admitem que a conciliação e como ela se deu até agora colocam em xeque esse papel contramajoritário da Corte.
“[Nesse caso, o STF] renuncia ao seu poder de determinar quais são os direitos fundamentais e os direitos das minorias em casos concretos, como esse específico referente aos povos indígenas”, diz Neves.
O acadêmico da UnB entende que, mesmo que o resultado da conciliação tenha de ser homologado pelo plenário do Supremo, como justifica Mendes, essa atribuição da corte fica ameaçada. “O Supremo retira-se de suas funções, em nome de um modelo negocial que é problemático quando se trata de direitos fundamentais ou direito de minoria já afirmado concretamente, não abstratamente, numa decisão judicial [anterior]”, preconiza.
Conciliação sobre outros temas
Na segunda audiência da comissão de conciliação, no dia 29, falando em nome de Gilmar Mendes, o juiz auxiliar disse que não há disposição do STF para mudar sua posição sobre o marco temporal. Portanto, a comissão deveria discutir outros assuntos, como formas de viabilizar a indenização de produtores rurais com áreas em terras indígenas.
Questionado pela reportagem se seria adequado seguir com a conciliação com esse enfoque, Neves entende que não: “Acho que essa lei [do marco temporal], ao pretender reverter uma decisão judicial, ela tem uma característica de inconstitucionalidade que contamina todos os dispositivos em geral. Porque o núcleo é inconstitucional. Se você tirar esse núcleo, que é a reafirmação do marco temporal, os outros dispositivos perdem o seu sentido prático”.
O que o STF deveria fazer?
Considerando a decisão anterior do STF, os três acadêmicos também defendem que o tribunal paute o tema no plenário e igualmente declare a Lei 14.701 inconstitucional. Vilhena e Neves enfatizam que a Corte deveria atender o pedido da Apib para suspender a norma liminarmente até o julgamento de mérito.
“As críticas do movimento indígena são absolutamente pertinentes, a começar pela questão da suspensão da lei que reintroduziu o marco temporal. Se essa tese é inconstitucional, como pode sobreviver uma lei que o restabelece? Não faz sentido”, questiona Vilhena.
“Já havia uma decisão do Supremo Tribunal Federal, definindo que o marco temporal é contrário à Constituição. O que cabe agora é a execução dessa decisão, de acordo com a Constituição e com a decisão do próprio Supremo”, reforça Neves.
E o Congresso?
Marcelo Neves aposta que, se houver algum papel do Congresso no debate, seria viabilizar a determinação do Supremo do ano passado. “Poderia o próprio legislador esclarecer como seria implementada a superação do marco temporal, como seriam implementadas essas medidas”, aponta.
Ao contrário disso, no entanto, ruralistas e bolsonaristas ameaçam aprovar no Congresso um projeto que inclui na Constituição a tese contrária às demarcações como forma de pressionar o tribunal e os indígenas.
Veras chegou a reproduzir um áudio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), informando que há um acordo “entre os poderes” para que a proposta não avance na Casa até o fim da conciliação no STF. O gesto do juiz foi visto pelos indígenas como uma ameaça: se não aceitassem participar do colegiado, sofreriam mais uma derrota no Congresso.
Daniel Sarmento lembra que, se o projeto for aprovado, o STF deverá analisá-lo à luz de sua decisão anterior. “O próprio Supremo já disse mais de uma vez que os direitos dos povos indígenas são cláusulas pétreas. Então, inclusive, se houver uma PEC alterando significativamente esses direitos para restringi-los, o papel do Supremo também seria o de invalidar essa PEC, a partir da perspectiva de que cláusula pétrea é limite até pra emenda constitucional”, contrapõe.
O que pode acontecer agora?
Diante da determinação de Mendes de seguir com a conciliação mesmo sem a Apib, os três acadêmicos sinalizam que a entidade não tem outra alternativa a não ser apelar ao próprio STF.
“[A Apib] poderia entrar com um tipo de petição ou ação perante o Supremo Tribunal Federal, para que essa comissão de conciliação seja suspensa ou extinta, na medida em que os indígenas não estão dispostos a participar da conciliação nesses termos”, aposta Neves.
“Nós poderíamos ter, pela maioria do Supremo, uma decisão que afastasse a decisão monocrática do ministro Gilmar. Esse seria o caminho, principalmente com argumentos como a [questão da] decisão por maioria e também a ausência da Apib do processo de conciliação”, finaliza.
Quem são os três juristas?
Oscar Vilhena Vieira é professor fundador e atualmente diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP). É mestre em Direito pela Universidade de Colúmbia-Nova York, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pelo Centre for Brazilian Studies - St. Antonies College, da Universidade de Oxford. Entre suas obras mais recentes estão: A Constituição e sua reserva de justiça (2023), A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional (2018) e Direitos Fundamentais – uma leitura da jurisprudência do STF (2017).
Daniel Antônio de Moraes Sarmento é professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É bacharel, mestre e doutor em Direito Constitucional pela mesma instituição. Fez pós-doutorado na Yale University, Estados Unidos. Foi procurador da República de 1995 a 2014. É autor de inúmeros artigos e livros, entre eles Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho (2012) e Direitos, Democracia e República (2017).
Marcelo da Costa Pinto Neves é professor titular de Direito Público da Universidade de Brasília (UnB). É mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Direito pela Universidade de Bremen. Tem pós-doutorado pela Faculdade de Ciência Jurídica da Universidade de Frankfurt e pelo Departamento de Direito da London School of Economics and Political Science. É autor de dezenas de obras, entre elas Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras como Diferença Paradoxal do Sistema Jurídico (2013) e Transconstitucionalismo (2009).
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O sócio fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, analisa o processo de mediação estabelecido pelo ministro do STF Gilmar Mendes sobre o marco temporal das demarcações
Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja, em 30/8/2024
Houve, quarta-feira (28/8), a segunda audiência de conciliação, convocada pelo ministro Gilmar Mendes, relator de ações judiciais propostas para discutir no STF a inconstitucionalidade da Lei 14.701/23, que trata do “marco temporal” e de outras restrições à demarcação de terras indígenas e ao seu uso pelos povos que as ocupam. O destaque da sessão foi o anúncio da saída da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) do processo.
A Apib é autora de uma das ações em discussão e é a única organização indígena, nessa condição, que integrava até então o colegiado instituído pelo ministro para promover a conciliação. A Apib decidiu retirar-se da instância por causa da informação trazida pelo juiz auxiliar designado para conduzir os trabalhos, Diego Viegas Veras, de que decisões poderiam ser tomadas pela maioria, mesmo não havendo a concordância das partes. Obviamente, isso dá ao processo um caráter de disputa política.
Não se trata de um detalhe, já que o que está em discussão são os direitos constitucionais dos indígenas. Não é concebível uma conciliação que os exclua. A Apib é a única organização indígena de âmbito nacional, até então representada no processo por todas as suas regionais, e tem a sua legitimidade reconhecida pelo próprio STF, inclusive para propor, como é o caso, Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs). Por óbvio, a conciliação só pode resultar do consenso entre as partes envolvidas.
DESPREPARO
Quando a Apib informou, ainda na primeira audiência de conciliação, no dia 5/8, que iria repensar a sua presença nos trabalhos diante do critério de decisão por maioria em uma comissão onde os indígenas são minoria, o juiz auxiliar declarou que, nessa hipótese, as audiências seguiriam adiante, com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) assumindo a representação dos interesses dos povos originários. Essa postura tutelar surpreendeu, por ignorar o Artigo 232 da Constituição, que diz: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa dos seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo“.
A própria representante da Funai na comissão interveio, imediatamente, para esclarecer que não dispõe de condições legais para substituir a Apib como autora da ação e legítima interlocutora dos direitos em questão. A propósito, na composição da comissão, o Ministério Público Federal (MPF) ficou relegado à condição de observador. O juiz chegou ao extremo da inabilidade política ao dizer que, se a Apib decidisse deixar a comissão, estaria assumindo a responsabilidade pelos conflitos por terra que ocorrem em vários estados…
Nessa segunda audiência, diante do anúncio da decisão da Apib, Veras informou que Gilmar Mendes deve substituí-la por outras representações indígenas, sem esclarecer quais seriam. Essa intenção foi prontamente questionada, já que não cabe substituir a autora do processo de forma discricionária e que não há outra organização indígena de âmbito nacional.
SEM DIÁLOGO
Em julho, foi feito um acordo no Congresso para adiar a votação de um projeto que prevê incluir na Constituição o marco temporal até que a conciliação no STF terminasse. A informação que circulou em Brasília é que o entendimento foi precedido por conversas entre representantes dos Três Poderes e outros atores políticos envolvidos – mas não os indígenas. Como se não bastasse, os representantes da Apib foram informados só na primeira audiência sobre o critério de decisão por maioria.
O STF deve zelar pelos direitos de minorias, como fez na decisão tomada, no ano passado, pela inconstitucionalidade do marco temporal, aprovando 14 teses complementares referentes às terras indígenas. Mas o ministro Gilmar Mendes não acolheu o pedido da Apib para suspender a efetividade da lei até o seu julgamento de mérito, nem mesmo dos artigos sobre o marco temporal e que afetam as teses já definidas pela própria Corte.
Os ministros do STF devem reconhecer que, do ponto de vista dos povos e dos representantes indígenas, as sinalizações que vêm sendo dadas na condução desse processo não são acolhedoras. Tampouco é trivial submeter direitos fundamentais à conciliação judicial. Pode-se questionar se a decisão da Apib foi a melhor, mas ela não é uma surpresa.
A indefinição da pauta do que deve ser conciliado também esfumaça o horizonte. A conciliação deveria focar na efetividade do que o STF já decidiu e na análise dos dispositivos da lei que ainda não foram discutidos, o que não é pouca coisa. Mas a inclusão de casos específicos e de outros temas em trâmite no STF abre margem para todo tipo de incerteza. Por exemplo, foi incluída no conjunto de ações que originou o processo de conciliação uma que requer a regulamentação do Artigo 231 da Constituição, quanto à pesquisa e lavra de minérios em terras indígenas e outras exceções ao direito de uso exclusivo dos indígenas sobre seus recursos naturais, segundo o “relevante interesse público da União”.
Hipoteticamente, parte da agenda que realmente interessa para resolver o problema das demarcações, como a questão da indenização pela terra a ocupantes com títulos válidos (além das benfeitorias realizadas nessas áreas), até poderia ser considerada “briga de branco”, o que demandaria um acordo sobre procedimentos administrativos interinstitucionais e sobre a disponibilidade de terras e de recursos financeiros para cobrir indenizações e outros custos envolvidos. As condições de funcionamento da câmara de conciliação colocadas até agora, porém, afastam completamente essa possibilidade.
REDUÇÃO DE DANOS
A partir de uma conciliação que fosse realmente inclusiva, seria necessário pactuar entre governo federal, Congresso, estados e proprietários rurais providências articuladas e orientadas para soluções, evitando esvair energias numa espiral de conflitos crônicos.
Em tese, o Congresso poderia prover leis que facilitem esse processo, além de lembrar dele na hora de apreciar o orçamento anual da União. O governo poderia criar fundos específicos, acessar novas fontes de recursos e articular parcerias com os estados, para compartilhar a solução dos passivos acumulados. O STF poderia validar e avaliar os avanços dessa concertação.
O pior descaminho seria promover representações oportunistas e artificiais, interferindo nas relações internas do movimento indígena, no afã de substituir a Apib. Essa prática não tem precedente na atuação do STF frente aos direitos indígenas e agravaria as condições de legitimidade do processo em curso. Seria típica dos mesmos extremistas que defendem a cassação de ministros e ameaçam reduzir os poderes do STF.
Talvez haja tempo para repor o sentido da conciliação. Quem sabe, começando pelo começo. O presidente Barroso poderia se dispor a conversar com os representantes da Apib sobre condições para se reintegrarem ao processo. O mais importante é a busca por convergências, sem ferir direitos ou interesses das partes, principalmente dos indígenas. Assim, provavelmente, as pendências a serem dirimidas chegariam melhor qualificadas à decisão do plenário do STF.
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A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) retirou-se da comissão de “conciliação” sobre o “marco temporal” das demarcações instituída pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes (leia mais abaixo).
Depois de lerem uma carta anunciando e justificando a decisão, cinco integrantes da entidade nacional representativa dos povos originários levantaram-se e saíram do auditório do tribunal onde ocorria a segunda audiência do colegiado, nesta quarta (28). Cerca de 50 lideranças que acompanhavam o evento fizeram o mesmo.
Os indígenas afirmam que os objetivos e as regras dos trabalhos até agora não foram explicitados de forma clara e transparente. “Não havia nitidez sobre o que se estaria a conciliar, quais seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado no sistema de proteção dos direitos indígenas que foram garantidos aos povos indígenas pelo Constituinte originário de 1988”, aponta a carta.
Até o início da primeira audiência, no dia 5, não foi feita nenhuma comunicação formal mais detalhada sobre o assunto. Só então, os indígenas ficaram sabendo que a comissão poderia tomar decisões por maioria, por meio de votação. O colegiado tem 24 integrantes e a Apib, apenas seis ‒ o que implica uma desvantagem numérica óbvia em qualquer deliberação. Membros de outros setores e organizações podem participar apenas como observadores.
Ainda na primeira audiência, a Apib foi informada de que, se optasse por sair do processo, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) poderiam consultar as comunidades em seu lugar. O juiz auxiliar indicado por Mendes para conduzir as atividades, Diego Viegas Veras, afirmou que, nesse caso, elas continuariam sem “problema algum”. Nesta quarta, ele salientou que essa era uma ordem do ministro do STF. Em seguida, parlamentares ruralistas e representantes de produtores rurais sugeriram substituir a Apib por outras organizações indígenas locais e menos representativas.
Já do lado de fora da Corte, numa coletiva de imprensa, o advogado da Apib Maurício Terena lembrou que Mendes ainda não respondeu a uma série de pedidos e recursos apresentados pela entidade, inclusive para que as regras de funcionamento da comissão fossem menos desfavoráveis e para que a lei em vigor sobre o “marco temporal" seja suspensa.
“Essa conciliação feita a partir de hoje sem a presença dos indígenas, sem uma das partes autora da ação, é ilegítima”, sentenciou. “O direito brasileiro assim prevê: que a autonomia, a vontade das partes deve ser respeitada e, assim que uma das partes sai do processo, essa conciliação precisa ser suspensa e a discussão deve voltar ao plenário do Supremo”, completou. Terena acrescentou que a eventual substituição da Apib na câmara seria uma "medida jurídica incabível", já que a entidade é coautora de uma das ações que a originou (leia mais abaixo).
Carta
“Neste cenário, a Apib não encontra ambiente para prosseguir na mesa de conciliação. Não há garantias de proteção suficiente, pressupostos sólidos de não retrocessos e, tampouco, garantia de um acordo que resguarde a autonomia da vontade dos povos indígenas”, diz a carta da entidade.
O texto critica o que os indígenas consideraram como uma série de pressões, atitudes discriminatórias e violações aos seus direitos ocorridas na primeira audiência. O documento destaca que foram impostas condições “inaceitáveis” e “até humilhantes” para a participação dos representantes dos povos originários nos trabalhos. Veras chegou a reproduzir um áudio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), lembrando que há um acordo “entre os poderes” para que o projeto que inclui o “marco temporal” na Constituição não avance na Casa até o fim da “conciliação” no STF. O gesto do juiz foi visto pelos indígenas como uma ameaça: ou aceitariam participar do colegiado, nas condições definidas por Mendes, ou sofreriam mais uma derrota no Congresso.
Em julho, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), propôs o entendimento na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) tramita, com a expectativa de que a câmara instalada no Supremo resolvesse a disputa em torno do “marco temporal” antes da votação do projeto no Congresso.
Nesta quarta, deixando de lado que a imensa maioria das vítimas por conflitos de terra sempre foi e é de indígenas, o Veras repetiu que quem se retirasse da "conciliação" seria responsável pela “espiral de violência no campo”.
“[É inadmissível sermos] submetidos a um processo de conciliação fora da lei, com esse nível de pressão, chantagem e preconceito”, contrapõe a carta da Apib. Apesar da decisão tomada nesta quarta, no documento a entidade afirma estar “à disposição para sentar à mesa em um ambiente em que os acordos possam ser cumpridos com respeito à livre determinação dos povos indígenas”.
'Marco temporal' e 'conciliação'
O “marco temporal” é uma interpretação ruralista, segundo a qual só teriam direito às suas terras as comunidades originárias que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese ignora as expulsões e violências cometidas contra essas populações, em especial nas últimas décadas. Na prática, pode inviabilizar as demarcações, por questionamentos administrativos ou judiciais.
Mendes instituiu a “conciliação” quando decidiu suspender os processos de instância inferiores relacionados à Lei 14.701/2023, que prevê o “marco temporal”, a possibilidade da realização de grandes empreendimentos econômicos, sem consulta prévia às comunidades, e de arrendamento nas Terras Indígenas (TIs), entre outras restrições aos direitos dos povos originários.
O ministro tomou a decisão como relator de ações sobre a lei ‒ a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586 ‒ além da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 86), que trata da regulamentação do parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição, sobre a posse e a exploração das TIs.
As ações foram apresentadas, desde o final do ano passado, pela Apib e partidos de esquerda (PT, PCdoB, PV, PSOL, Rede e PDT), questionando a constitucionalidade da norma, além do PP, PL e Republicanos, que a defendem. O ISA é amicus curiae (“amigo da corte”) nas três ADIs (ou seja, pode apresentar informações e argumentos nos processos).
A Lei 14.701 foi promulgada após o Congresso derrubar, em dezembro de 2023, quase todos os vetos do presidente Luís Inácio Lula da Silva ao texto original. Sua aprovação desafiou a decisão do STF, de meses antes, que declarou inconstitucional o “marco temporal” por 9 votos contra 2. Na mesma decisão, os ministros da corte fixaram teses complementares sobre o assunto, a exemplo da possibilidade de indenização de ocupantes não indígenas de TIs com títulos de terra legítimos.
Recados de Gilmar Mendes
A saída dos representantes indígenas acabou alterando a programação da audiência no STF desta quarta. A ideia original era comparar e analisar pontos da lei e das decisões do tribunal, mas a discussão acabou concentrando-se nos possíveis impactos e encaminhamentos que deveriam ser tomados a partir daí.
Veras decidiu que não haveria nenhuma deliberação mas ignorou os pedidos para que a audiência fosse suspensa para que a situação fosse melhor avaliada e o diálogo com a Apib fosse retomado. As solicitações foram feitas pela deputada indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG), representantes do MPI, da Funai e dos partidos coautores das ações.
Por meio do juiz auxiliar, Gilmar Mendes deu vários recados e sinalizou qual deve ser o rumo das conversas em sua perspectiva. Segundo o ministro, o objetivo da comissão tem de ser a discussão de como resolver “problemas concretos” relacionados às demarcações, entre eles a definição de prazos para realizá-las, de procedimentos para retirar os invasores das TIs e formas de viabilizar as indenizações para os produtores rurais. Esta última possibilidade está prevista tanto na decisão do Supremo do ano passado quanto na nova lei.
Desde o início da audiência, Veras repetiu que a questão do “marco temporal” estaria “ultrapassada”, até ser mais claro ao afirmar que, segundo Mendes, “não há espaço para retroceder” em relação à posição do Supremo sobre o assunto. Daí a necessidade de tratar dos outros temas. “O ‘marco temporal’ não vai resolver os conflitos”, apontou o juiz auxiliar.
"Infelizmente, a impressão que ficou ao final da audiência, o que ficou subentendido é a ideia de substituir o ‘marco temporal’ por outras propostas igualmente inconstitucionais, como remover comunidades de seus territórios. Isso não pode acontecer", aponta a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.
Representantes do Ministério Público Federal (MPF), da Funai e dos partidos de esquerda insistiram que a Lei 14.701 está acirrando os conflitos de terra e inviabilizando as demarcações. Os técnicos dos órgãos públicos reforçaram os pedidos para que Gilmar Mendes suspenda a vigência da legislação. O Ministério da Justiça têm paralisado e retornado à Funai os processos demarcatórios com a justificativa de que o imbróglio jurídico ainda não foi resolvido.
“É importante dizer que a indefinição por parte da Corte para levar a questão para o plenário e reafirmar a sua decisão [anterior] tende a manter esses conflitos acontecendo. É por isso que a gente também decidiu sair da mesa, porque entendemos que ela só vai protelar mais as discussões”, salientou Mauricio Terena. Ele disse confiar que o plenário do STF irá referendar a posição assumida no passado.
Veras reforçou que as propostas da comissão ainda serão analisadas pelo conjunto dos ministros da Corte. Também afirmou que a comissão irá propor soluções com a vigência da lei e, se não for possível, encaminhar sugestões de mudança da norma ao Congresso.
“O resultado da comissão não representará a posição do STF. O que se fará aqui é uma proposta de encaminhamento. Estão confundindo o processo”, defendeu. Ele confirmou as novas audiências para os dias 9 e 23/9. No próximo encontro, os participantes deverão apresentar sugestões de nomes de especialistas que serão ouvidos no evento seguinte. A princípio, o calendário de atividades vai até 18/12.
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Em meio a ataques, pedidos de desculpas e promessas de demarcação, avança a luta do povo Guarani Kaiowá para retornar às terras de que foram expulsos à força
“Será que nós não é ser humano? Será que é só o fazendeiro rico?” O questionamento do rezador guarani kaiowá Tito Vilhalva, de 106 anos, sintetiza o sentimento do povo Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Expulso de seu território, como parte de uma violenta política de colonização que exterminou e desagregou comunidades inteiras, Seu Tito pôde retornar a Guyraroká, declarada como Terra Indígena, mas aguarda a homologação da área há mais de 15 anos, o que causa uma constante insegurança a ele e sua família.
Infelizmente, o caso de Guyraroká não é isolado. À espera da demarcação de suas terras, são inúmeras as comunidades que vivem em condições sub-humanas, com a falta de direitos básicos, como alimentação adequada, acesso à água potável e saneamento. Elas também sofrem as mais diversas formas de preconceito e exploração – além dos frequentes ataques e ameaças àqueles que decidem retornar para suas terras de ocupação tradicional.
Na próxima segunda-feira (19/08), o governo federal promete inaugurar um novo capítulo das tentativas de solução desse grave quadro. Atendendo a uma demanda da Aty Guasu, organização representativa dos povos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou, na dia 10, uma força-tarefa para acelerar os processos de demarcação das Terras Indígenas (TIs) desses povos em Mato Grosso do Sul.
Procurado pela reportagem do ISA, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirmou que, em conjunto com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), está qualificando os dados solicitados por Lula e que iniciará os trabalhos na próxima semana, com a discussão da metodologia e detalhes da atuação.
As medidas governamentais acontecem em resposta a uma escalada de violência iniciada há cerca de um mês contra aldeias reocupadas pelos indígenas na TI Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, área delimitada pela Funai em 2011, com 12.196 hectares de extensão (um hectare corresponde mais ou menos a um campo de futebol).
Dias antes da promessa do presidente, uma comitiva do governo federal visitou a área. Estiveram presentes a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara; Joenia Wapichana, presidente da Funai; Célia Xakriabá, deputada federal (PSOL-MG); Gleice Jane, deputada estadual (PT-MS); Eloy Terena, secretário-executivo do MPI; Marco Antonio Delfino de Almeida, procurador da República; e Eliana Torelly, coordenadora da 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF).
Segundo a ministra, mais do que prestar solidariedade às vítimas, a visita teria um caráter resolutivo. “Existe aqui uma necessidade urgente da população por uma solução em curto prazo. Estamos aqui enquanto representação desse governo que tem um compromisso de avançar com esse processo de demarcação, porque é uma área que não vai ser afetada pela Lei do Marco Temporal”, afirmou.
Mesmo não sendo aplicável ao caso, em 2015 o processo de demarcação chegou a ser anulado pela Justiça Federal com base na tese ruralista do “marco temporal” (relembre). Em 2012, uma liminar da Justiça Federal já havia suspendido o andamento da demarcação em favor do Sindicato Rural de Itaporã. O processo segue paralisado até hoje. “Nós queremos agora voltar a dar encaminhamento, a destravar esse processo que se encontra parado por impasse judicial”, afirmou Sonia.
Durante a visita, a presença da Força Nacional e dos representantes do governo não foi capaz de intimidar o acampamento de ruralistas que concentrava dezenas de caminhonetes a apenas 150 metros da aldeia Yvyajere. “Será que precisaremos morrer para ter direito ao que é nosso?”, suplicou uma das lideranças.
No dia anterior à chegada da comitiva, uma ação de reintegração de posse movida por uma das ocupantes não indígenas da TI foi suspensa pelo TRF-3. Desde a visita, não foram registrados outros ataques, mas a situação segue tensa e os indígenas temem uma nova ofensiva. Na manhã desta sexta-feira (16), ruralistas realizaram um “tratoraço” contra as demarcações em Douradina, aumentando a tensão.
“Desde nova, a gente luta pelas nossas terras, desde muito nova a gente já corria das armas de fogo. Isso acontece há muito tempo, há décadas”, relatou a anciã Nona Mereciana, filha do antigo líder Horácio Aquino. “Hoje, é impressionante como ainda temos que continuar fazendo isso, continuar correndo das armas de fogo. Mesmo eu estando nessa condição, mesmo sendo uma anciã. Isso me entristece muito”, completou.
Nona Mereciana contou à comitiva que foram oferecidas panelas em troca de suas terras. “Eu lembro muito bem, como se fosse ontem, quando chegaram os colonizadores [...] Quando a gente se recusou a sair, começaram as agressões que até hoje continuam”, lembra.
Ataques
O primeiro ataque aos indígenas na TI Panambi-Lagoa Rica ocorreu na madrugada entre 13 e 14 de julho, como reação a uma tentativa de ocupação de uma das porções do território demarcado – a antiga aldeia de Jaguay’guague. Segundo relatos dos Guarani Kaiowá, a reocupação foi prontamente repelida por produtores rurais, que cercaram os indígenas com carros e os fizeram fugir a pé, ameaçando retornar e destruir aldeias mais antigas, como Gua’a Roka, Guyra Kambi’y, Ita’y Ka’aguyrusu e Tajasu Ygua.
Logo no domingo à tarde um novo ataque aconteceu, em Guyra Kambi’y, deixando um homem baleado na perna. “Foi muito tenso para cá, muitos tiros”, contou Ava Poty Ju*, que vive na área desde a infância. “O fazendeiro veio aqui perto do vizinho e começou a atirar”, denunciou o jovem, contando que, nos dias seguintes, outras três aldeias foram reocupadas pelos indígenas – Yvyajere, Pikyxiyn e Kurupa’yty – e que o cerco dos ruralistas ampliou-se, levando a novos ataques e a uma tensão.
“Começou a chegar um monte de caminhonete e montaram um acampamento de carros”, relatou a liderança, que conta que os indígenas chegaram a ser impedidos de cantar e rezar na aldeia Yvyajere. “Os carros vêm e acendem aquela luz alta pra cima de nós. Eles estão montando tendas e os indígenas estão resistindo, para retomar a terra”, informou. No mesmo período, a Aty Guasu denunciou também um ataque ao tekoha Kunumi Vera, na TI Dourados Amambaipegua I, em Caarapó (MS). Tekoha designa uma área de ocupação tradicional e significa “ "lugar em que se realiza o modo de ser" em Guarani.
Daniela Alarcon, coordenadora-geral no Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas no MPI, disse que o órgão só conseguiu agir com celeridade porque já havia instalado, em 2023, um Gabinete de Crise para acompanhar a situação dos Guarani Kaiowá no estado. A instância vem atuando para garantir a segurança dos indígenas nas áreas atacadas. Uma das ações foi a pressão junto ao Ministério da Justiça para que a Força Nacional fosse novamente deslocada para a área, visto que a portaria de atuação havia vencido em 10 de julho, dias antes dos ataques começarem.
A escuta dos indígenas e o acompanhamento in loco permitiu ao departamento identificar o modus operandi dos ataques e alguns de seus principais atores, detalhou Alarcon. “Tem uma dinâmica desses ataques, que se dão com o uso de rojões, armas de fogo, uso de munição menos letal, possivelmente trazida do Paraguai – porque, de acordo com uma análise preliminar da Força Nacional e da PM, é uma munição que não é de uso das forças de segurança do Estado brasileiro. O que acende pra gente o alerta também quanto à formação dessas milícias no campo”, explica.
Mesmo com a presença da Força Nacional e o acompanhamento da situação pelas autoridades, 15 dias depois, na tarde do dia 3 de agosto, houve um ataque ainda mais violento aos indígenas, deixando pelo menos dez pessoas gravemente feridas, tanto por balas de borracha quanto por munições letais. Um jovem foi baleado na cabeça e ficou hospitalizado.
Segundo Teodora Souza, que é coordenadora regional da Funai em Dourados, o órgão tem visitado as comunidades atacadas diariamente e acompanhado a situação das vítimas. “O clima desde o começo está bastante tenso”, afirma. Ela conta que, após esse último ataque, o efetivo da Força Nacional saltou de duas para 20 viaturas, com a presença de 65 agentes.
Um dos principais problemas no momento, segundo ela, é o acesso à alimentação. As cestas básicas distribuídas pela Funai e pelo governo do estado são insuficientes e os indígenas têm enfrentado racismo e hostilidade ao tentar comprar alimentos nos municípios próximos e estão dependendo de doações.
Souza lembra que a área já foi reconhecida como TI há mais de dez anos e que a comunidade teme por uma espera ainda maior para ter a posse efetiva da terra: “Eles não aguentam mais esperar”.
Impactos do "marco temporal"
Para os Guarani Kaiowá, a terra não é apenas um espaço físico; é parte fundamental de seu ñandereko, seu modo de existência. “A terra não é para vender, porque a terra é nosso corpo. A terra é nossa vida, a terra é nossa alimentação, porque é daí que sai arroz, feijão, milho, cria gado, cria tudo”, explicou Tito Vilhalva, relembrando sua luta pelo reconhecimento da TI Guyraroká, um dos maiores símbolos do ataque aos direitos territoriais indígenas no Brasil.
Em 2014, com base no “marco temporal”, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a portaria declaratória da área, ignorando o longo processo de esbulho sofrido pelos indígenas (relembre). No ano passado, o STF considerou inconstitucional a tese ruralista. Pouco depois, o Congresso aprovou uma nova lei (14.701/2023), incluindo-o na legislação.
“Já veio antropólogo, engenheiro, já medimos tudo, eu fiz tudo. O papel, o relatório tá na mão do [ministro do STF] Gilmar Mendes, mas parece que o Gilmar Mendes jogou no lixo”, reclama o rezador centenário. “Sempre eu fico pensando, porque se vai demorar a demarcação de Guyraroká, daqui dez, 15, 20 anos, aí eu já não vou participar mais, porque minha idade está avançando, estou com 106 anos que estou vivendo aqui”, lamenta.
O cone sul de Mato Grosso do Sul concentra uma das maiores populações indígenas no Brasil – cerca de 65 mil pessoas dos povos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva, em 26 TIs com processos de demarcação iniciados, mas que não avançam para as próximas etapas. Entre elas, há 15 áreas cujos estudos de identificação sequer foram publicados.
Foi em 2016 a última vez que a Funai reconheceu terras dos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva: as TIs Dourados Amambaipegua I, em Caarapó, e Ypo’i/Triunfo, em Paranhos. A última área homologada pela Presidência da República foi a TI Arroio Korá, em 2009. Mas mesmo em áreas que chegaram a esse último estágio do processo demarcatório, os indígenas muitas vezes não estão em posse de suas terras, em razão de ações judiciais e despejos.
Esforços pelas demarcações
Os esforços de vários atores e instituições para fazer avançar as demarcações não são recentes: após intensa mobilização dos indígenas, em 2007 foi firmado um Compromisso de Ajustamento de Conduta (CAC) entre o MPF e a Funai, para obrigar o órgão indigenista a realizar os estudos de identificação e delimitação de 12 áreas até o ano de 2010. Até o momento, apenas três relatórios foram publicados.
Diante da paralisação das demarcações, muitos indígenas retornam pequenas porções dos territórios tradicionais, num processo chamado “retomada”. “A retomada é restaurar tudo. Primeiro restaura a mente, depois o corpo, depois o espírito, depois vem a adubação da terra”, explicou Lileia Pedro de Almeida, que luta pela demarcação da TI Laranjeira Ñanderu, em Rio Brilhante.
“Esse ‘marco temporal’ que veio aí pra mim é um genocídio maior, que vem destruindo tudo, até os Encantados, tudo. Nós vivíamos uma vida tranquila há mais de 500 anos, aí eles vêm e faz uma lei para destruir o povo, sabendo pra quê: pela ganância, pelas indústrias, pelas empresas, pelo agronegócio, pelo petróleo, pelo gás… Essa lei mata os povos originários”, desabafou Lileia.
Ao comentar a tese ruralista, Tito Vilhalva lembra que, para os Guarani Kaiowá, só quem pode controlar o tempo é a divindade Xiru Pa’i Kuara, e que os impactos que ela vai produzir não se restringem aos indígenas. “Esse ‘marco temporal’ prejudicou todo o país, o brasileiro. Tá acontecendo. Vai acabar a água, não vai levantar mais arroz, não vai criar mais nem milho, soja, não vai chover mais”, diz.
Segundo Teodora Souza, os processos de demarcação já estão sendo afetados pela “Lei do Marco Temporal”. “Essa tese do ‘marco temporal’, ela gerou muito mais insegurança. Isso tem prejudicado muito o andamento dos processos. Isso começou a afetar os [Grupos de Trabalho] GTs, que tem muito mais dificuldade de realizar os estudos”, afirmou.
Para ela, a tese é usada agora para perpetuar a situação de vulnerabilidade vivida pelos Guarani Kaiowá. “Falta terra para plantar, não tem terra, não tem água, mora embaixo da lona. São tantas coisas que as pessoas precisam para viver dignamente e isso ninguém vê. Muitas vezes, o governo até quer fazer, mas se vê impedido de fazer. Isso é um desrespeito ao direito dos povos indígenas, aos direitos humanos. Nunca houve a demarcação necessária”, critica.
De acordo com o procurador Marco Antonio Delfino de Almeida, a aplicação da Lei 14.701/2023 às demarcações não é adequada. Para ele, uma vez que os processos foram iniciados e tiveram seus relatórios aprovados, a nova lei não deveria ser razão para paralisá-los. “É uma questão jurídica: a Constituição fala que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, explicou.
É na mesma direção que argumenta uma nota técnica publicada pelo ISA, em outubro de 2023, antes da aprovação da lei. “As fases do processo de demarcação que se encerram sob a legislação vigente são acobertadas pela preclusão administrativa, de modo que Lei nova não tem o condão de retroagir para fases anteriores dos processos administrativos que já se consumaram e se estabilizaram sob leis e decretos vigentes à época de sua realização”, aponta o documento (relembre).
São 263 processos de demarcação em andamento na Funai hoje (saiba mais). O impacto desses artifícios utilizados para travar as demarcações é também um dos alertas trazidos na nota. “Retroagir Lei nova a processos de demarcação que já demoram 10, 20 e até 30 anos para serem finalizados configurará inadmissível mora do Estado brasileiro com os povos indígenas, que estão sob ameaça e em grave vulnerabilidade física e social”, continua o documento.
A advogada do ISA Juliana de Paula Batista lembra que a aplicação do ‘marco temporal’ sem maiores análises pode, inclusive, desconsiderar o histórico de violência e expulsões forçadas dos povos originários. "Em algumas situações, as expulsões foram realizadas pelas próprias forças de segurança do Estado, em conluio arbitrário com ocupantes não indígenas. Essas formas de violência foram proibidas pela Constituição brasileira, que veda a transferência forçada dos indígenas de suas terras e classifica os direitos territoriais como originários e imprescritíveis", destaca.
“Essa terra pertence a nós”
A região onde ocorreu a escalada de violência é conhecida pelos Guarani Kaiowá como Ka'aguyrusu, que em sua língua significa “mata grande”. Hoje desmatada e dominada por lavouras de cana, soja, milho e outras monoculturas, a área é o que os indígenas chamam de tekoha guasu, um grande território, e guarda inúmeras histórias de expulsões e tentativas de confinamento em diminutas porções de terra. Histórias que estão vivas não só na memória dos anciãos, como na dos jovens.
“Nossos avós foram expulsos do seu território e agora os Kaiowá querem que seja demarcado, que seja homologado, porque pertence aos Guarani Kaiowá”, explica Ava Poty Ju sobre as ações de retomada. “Já faz 20 anos que não demarcam nosso território. As crianças que estavam em 2005 cresceram hoje. Nós mesmos vamos fazer a autodemarcação, porque esse território pertence a nós”, afirmou o jovem, mencionando e traduzindo um canto kotyhu de seu povo, que remete ao retorno dos Guarani Kaiowá a seus tekoha:
Ko yvy ore mba'e [Essa terra é nossa]
Ko yvy nhande mba'e [Essa terra pertence a nós]
Tupã xeru ome'e va'ekue [Essa terra foi deixada por Tupã]
Ko tekoha re xe avy'a [Nesse território eu me alegro]
Ambohyapu xe mbaraka [Aqui eu canto e faço meu chocalho soar]
Nos anos 1940, quando o governo de Getúlio Vargas promoveu uma política de incentivo à colonização do Centro-Oeste, a região de Ka'aguyrusu foi impactada pela criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand) – que abriria caminho para a fundação dos municípios de Douradina, Dourados, Rio Brilhante, entre outros. As áreas ocupadas tradicionalmente pelos Guarani Kaiowá e Nhandeva foram transformadas em lotes da colônia e cedidas a não indígenas, o que consolidou o esbulho das terras.
“A partir daí os grandes grupos se dividiram muito. Tinha um grupo que ia pra região de Panambizinho, um grupo que foi para Dourados, um grupo que permanecia por aqui e um grupo que vivia circulando e chegou o momento que não dava mais pra circular”, rememora o pesquisador indígena Kaiowá Puku*, que também é originário de Ka’aguyrusu e estudou a história da região.
“Quando foi criada a Cand, no início da década de 1940, muitos indígenas ainda estavam em suas localidades em várias regiões – inclusive na região de Ivinhema, Vicentina, Fátima do Sul e vivia de caça e pesca. E já existiam fazendeiros naquele tempo, que vinham do estado de São Paulo. Muitas famílias foram levadas para a Reserva Indígena de Dourados, mas o pessoal retornava, ia e voltava”, complementou.
Mesmo não sendo originário de Ka’aguyrusu, o centenário Tito Vilhalva também tem memórias desse processo e da ocupação tradicional dos Guarani Kaiowá na região: “Eu nasci em 1920, já tô com 106 anos, conheço tudo aqui no Mato Grosso. Caarapó não era cidade, Santa Luzia não era cidade, Dourados não era cidade. Não tinha estrada, a condução era só o cavalo, carreta”.
Ao longo do século XX, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e depois a Funai, trabalharam sistematicamente para expulsar, remover e confinar os indígenas das vastas áreas que tradicionalmente ocupavam em pequenas reservas criadas pelo estado. As terras, antes habitadas por eles, foram vendidas e alienadas como propriedades privadas para fazendeiros e colonos, cuja posse foi legitimada por títulos de propriedade emitidos pelo próprio Estado.
Ainda em 1946, lideranças das aldeias do Panambi procuraram o SPI para mediar situações de conflito que ocorriam a partir da ocupação de suas terras pelos colonos. Nos anos 1950, a administração da Colônia Agrícola prometeu uma área de 2.037 hectares para as comunidades Guarani Kaiowá da região. A transação nunca chegou a ser oficializada em cartório.
Entre os documentos que comprovam esse histórico está um relatório enviado pela antropóloga Joana Fernandes à Funai nos anos 1980, dando conta de que, embora tenham sido reservados aos indígenas e demarcados fisicamente pela Funai em 1971, os 2.037 hectares não estavam em posse dos indígenas e eles viviam então confinados em uma pequena área da Colônia Agrícola.
Um documento de 1984 da 9ª Delegacia Regional da Funai comprova que o órgão tinha conhecimento da situação. Nele, servidores da Funai e do Incra informam que os indígenas estavam vivendo em apenas 400 hectares, ainda não demarcados, e que a área então reivindicada coincidia com 46 lotes da Colônia, “totalmente desmatada e sendo cultivada mecanicamente todos os anos”. Na época, os servidores já pediam urgência para a regularização da área.
Almeida ressalta que, no caso dos Guarani Kaiowá em Panambi-Lagoa Rica, mesmo com as expulsões e o processo de confinamento, a comunidade nunca se afastou de seu território. “A comunidade nunca saiu, há uma vasta documentação sobre isso. O processo de demarcação que ocorreu em 1971, a tentativa de demarcação, ela sepulta qualquer alegação de que haveria possibilidade do ‘marco temporal’ ali. Eles nunca deixaram a Terra Indígena constitucionalmente prevista”, detalha.
Na avaliação do procurador, nesse caso e de outras TIs, foram agentes do Estado os principais responsáveis pelas remoções dos indígenas e pela titulação de suas terras a particulares, o que ele classifica como um “erro histórico”. “Cabe ao governo federal dentro do próprio conceito de Justiça de Transição, a devolução do território, mas igualmente a correção desse erro histórico, que foi a titulação dessas pessoas”, defende.
Em busca de memória, verdade, justiça e reparação pelas violências sofridas pelos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva é que Almeida, a pedido das comunidades indígenas, tem atuado junto à Comissão de Anistia, do Ministério de Direitos Humanos (MDHC), e demandado seu reconhecimento como anistiados políticos coletivos. A primeira comunidade anistiada pela Comissão foi a de Guyraroká, em abril, e a segunda foi a da TI Sucuriy, em julho.
Falando em língua Guarani, a liderança da área Jety Jagua Guasu lembrou que as violações que sofreram não só foram documentadas à época, mas testemunhadas pessoalmente pelos indígenas. “Fomos levados de caminhão, como lixo, como gado, como nunca um ser humano deve ser tratado e nem mesmo animal. Se eu ia mostrar vocês nossas casas queimando, nossas roças sendo queimadas pelos fazendeiros e que a gente só testemunhou a olho nu. Hoje eles estão matando nossos irmãos nas retomadas, sem dó, sem piedade”, criticou.
A cerimônia em que o Estado brasileiro voltou a pedir desculpas aos Guarani Kaiowá em Sucuriy por despejos, remoção forçada, violência psicológica, entre os anos de 1984 e 1987, acontecia no mesmo dia em que a Justiça Federal decidiu favoravelmente a uma ação de reintegração de posse contra uma das retomadas na TI Panambi-Lagoa Rica. No início da audiência, a relatora do caso de Sucuriy, Maíra Pankararu, lembrou que, assim como Panambi-Lagoa Rica, essa terra também faz parte do amplo território tradicional de Ka’aguyrusu.
Em seu discurso, o procurador Marco Antônio também conectou as situações das duas terras, lembrando que os indígenas nunca saíram daquele local e que tiveram sistematicamente seu direito de permanência negado pelo próprio Estado. “Temos ido sistematicamente a Douradina e ouvido pessoas que estão lá. Por ocasião do processo de implantação da Cand, casas foram queimadas porque elas estavam exatamente nos locais onde haveria a delimitação dos lotes. E essa história deverá ser contada, para que essa reparação seja feita, para que essa reparação possa ser feita não apenas a essa comunidade, mas a também outras comunidades que sofreram e sofrem essa mesma violência”.
Para Genito Gomes, liderança da retomada Guaiviry, em Aral Moreira, que está fazendo um filme sobre a história da Aty Guasu, é uma injustiça que os indígenas que lutam para retornar a seus territórios sejam tratados como invasores, quando suas terras é que foram invadidas e expropriadas no passado.
“Todo mundo fala de retomada, mas, na verdade, quando o governo vendeu pros fazendeiros, o indígena não sabia português, tinha medo dos brancos, tinha medo do cavalo, tinha medo do revólver e saiu pelo seu território. Saiu na marra mesmo, expulso mesmo, que expulsaram. Assim o indígena correu tudo. Não é que a gente retomou das pessoas, porque nós, povo indígena não vendeu a terra, não negociou o nosso território. Nós fomos expulsos”, conta.
O retorno de Genito e seus parentes à retomada de Guaiviry aconteceu em 2011, sob a liderança de seu pai Nísio Gomes, assassinado a tiros, em uma tentativa de expulsão naquele ano.
As investigações levaram à prisão preventiva de pessoas envolvidas no ataque e à denúncia de 19 delas pela morte do cacique.
Numa espiral de injustiças, mais de dez anos depois do ataque, os estudos para a delimitação do território pela Funai ainda não avançaram – e o corpo do rezador Nísio Gomes, morto na luta pela demarcação de sua terra, segue, ainda hoje, desaparecido e insepulto.
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