Ato foi publicado no Dia da Amazônia (5/9). Última portaria declaratória foi editada pela pasta há seis anos, em 2018
Na tarde da última quinta-feira (5/9), o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou as portarias declaratórias de três Terras Indígenas (TIs): Apiaká do Pontal e Isolados (MT), dos povos Apiaká, Isolados do Pontal e Munduruku; Maró (PA), dos povos Arapium e Borari; e Cobra Grande (PA), dos povos Arapium, Jaraqui e Tapajó (veja mapa abaixo). No total, as áreas abrangem o equivalente a 1,4 milhão de campos de futebol ou duas vezes o territorio do DF.
A última declaração de TI foi feita pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) há seis anos, em 2018. Os estudos de identificação e delimitação das três áreas declaradas agora foram aprovados há mais de dez anos e levaram, em média, 12,6 anos para avançar para as etapas seguintes da regularização.
Já para as demais TIs que ainda aguardam portaria declaratória o tempo de espera segue aumentando. O período médio para a declaração de uma área chegou a ser de dois anos e meio no primeiro mandato do presidente Lula (2003 a 2006), quando o MJ declarou 30 territórios.
A edição de portarias já caminhava em ritmo lento desde o último mandato de Dilma Rousseff (2015-2016), quando 15 TIs foram declaradas. Torquato Jardim, ministro da Justiça de Michel Temer (2016-2018), editou somente três atos. No governo Bolsonaro, quando pela primeira vez desde a Constituição nenhuma TI foi declarada, a média de tempo saltou para 12 anos.
“Um dos casos mais emblemáticos é o da TI Barra Velha do Monte Pascoal, no sul da Bahia, onde a espera de mais de 16 anos pela portaria declaratória tem ensejado conflitos violentos, apesar da existência de decisões judiciais favoráveis ao povo indígena pataxó”, avalia o pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) Tiago Moreira.
Segundo os dados monitorados pelo ISA, existem, no total, 44 TIs já identificadas pela Funai aguardando a declaração pelo Ministério da Justiça, além de 65 terras à espera da homologação pela presidência da República. No total, existem 265 TIs com processo de demarcação em andamento.
Indígenas comemoram
Miracildo Silva da Conceição, do povo Tapajó, representante do Conselho Indígena da Terra Cobra Grande (COINTECOG), conta que o fim desse longo processo veio a partir de um convite para uma reunião no dia da primeira audiência pública de conciliação sobre a chamada Lei do Marco Temporal (14.701/2023). Com os ataques a comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul (MS), entretanto, o encontro foi reagendado para a última quinta-feira.
“A gente pensou que era uma simples reunião. Na verdade, estava tudo certo para fazer a assinatura da [portaria] declaratória”, afirmou. “Para nós foi um momento de alegria, teve toda uma cerimônia de assinatura, presenciamos o ministro assinando. Saímos do Ministério da Justiça de alma lavada e dever cumprido”, celebrou.
Eliane Xunakalo, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), também comemorou a decisão, fruto de uma forte pressão do movimento indígena, além de idas e vindas no MJ, na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e no Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
“A gente vê como resultado de muitas articulações, vê com bons olhos e espera que os outros territórios que estão aguardando também saiam e que a gente consiga encontrar alternativas para outros processos que estão no início como um grupo de trabalho, os que estão sub judice também, para que os nossos povos tenham os territórios demarcados, para que nós possamos ter o nosso direito reconhecido pelo Estado”, defendeu.
Assista ao vídeo:
Em uma publicação do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita), o cacique-geral da TI Maró, Odair José Alves de Souza, conhecido como Dadá Borari, do povo Borari, também celebrou a decisão, mas relembrou que o processo de regularização precisa ser concluído. “Hoje, a Terra Indígena Maró só resta comemorar essa vitória e festividades”, afirmou.
Por meio das portarias, as três áreas são declaradas como de posse permanente e exclusiva dos povos que as habitam tradicionalmente e aguardam agora delimitação física da área e a homologação pela presidência da República, etapa final do processo demarcatório.
“Essas três Terras Indígenas declaradas têm importância fundamental para o equilíbrio socioambiental dessa região da Amazônia. Elas estão situadas em diferentes partes da Bacia do Tapajós, um rio que sofre com inúmeras pressões, provocadas pelo avanço da fronteira agrícola, com a construção de hidrelétricas e também com a mineração ilegal”, explica Moreira.
Seis anos sem declarações
Lewandowski herdou um passivo do ex-ministro Flávio Dino de ao menos 28 processos que foram encaminhados pela Funai para declaração, segundo informações do próprio órgão indigenista. Entre eles, onze estariam na lista do MJSP para declaração, de acordo com reportagem do Infoamazonia, incluindo dois encaminhados na semana passada. As TIs que ainda aguardam suas portarias são: Sawré Muybu (PA); Sambaqui (PR); Djaiko-aty (SP); Amba Porã (SP); Promorim (SP); Ka’aguy Mirim (SP); Ypol Triunfo (MS); Xakriabá (MG) e Pindoty – Araça-Mirim (SP).
“As portarias assinadas mostram que é possível fazer mais, apesar do cenário de conflito político e do grande passivo de áreas à declarar. Além das três TIs, há outras situadas em áreas que já são da União, e em sobreposição com Unidades de Conservação federais”, afirma o pesquisador do ISA.
Esse é o caso da TI Sawré Muybu. Sobreposta a uma Unidade de Conservação, a área sofre com invasões de garimpeiros e madeireiros. “Não deveria existir entraves para declarar essa área. A segurança da Unidade de Conservação a qual está sobreposta depende da própria posse plena do território pelos Munduruku. Os povos indígenas têm sido os melhores guardiões do patrimônio ambiental, de nossas florestas”, explica.
Em 2023, 14 TIs que estariam prontas para a homologação foram encaminhadas para assinatura do presidente Lula, mas, apesar da expectativa de que as homologações acontecessem ainda no primeiro mês de governo, isso não se cumpriu. Até o momento, dez áreas foram homologadas nesta terceira gestão do petista.
Uma das razões para o entrave nas demarcações, conforme já apontou o movimento indígena, é a aprovação da Lei do Marco Temporal, no fim de 2023. Ao longo do ano, tanto a Funai quanto o MJSP afirmaram estar recuando no andamento dos processos em razão da norma. Já o presidente Lula frustrou o movimento indígena ao demarcar apenas duas das seis TIs prometidas para abril de 2024.
“Quero que vocês saibam que essas terras já estão prontas. O que nós não queremos é prometer para vocês uma coisa hoje e amanhã você ler no jornal que a Justiça tomou uma decisão contrária. A frustração seria maior”, afirmou na ocasião.
Conheça as Terras Indígenas declaradas
Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados
A área declarada como de posse permanente dos povos Apiaká, Munduruku e grupos isolados pelo MJSP possui 982,3 mil hectares. Localizada em Apiacás, no Mato Grosso, a TI teve seu processo de demarcação iniciado em 2008, quando o primeiro Grupo Técnico para estudos de identificação e delimitação foi constituído. O reconhecimento da área pela Funai aconteceu três anos mais tarde, em 2011.
Sobreposta parcialmente ao Parque Nacional do Juruena, a área declarada teve o andamento da demarcação paralisado por anos em razão de um conflito de interesses entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Funai. Com a morosidade no andamento dos processos, o Ministério Público Federal (MPF) em 2013, chegou a instaurar uma Ação Civil Pública e um Inquérito Civil Público para que fossem adotadas as medidas administrativas necessárias para finalizar a demarcação.
A região em que a TI está localizada, na fronteira entre Mato Grosso, Pará e Amazonas, sofre intensa pressão das frentes de expansão do agronegócio e da atividade garimpeira. Segundo o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Funai, existem ao menos cinco imóveis sobrepostos à TI.
Além disso, uma outra pressão sobre o território se dá a partir da construção da hidrelétrica São Manoel, localizada no Rio Teles Pires, (MT e PA), em 2014. No mesmo ano, o procurador-geral da República à época, Rodrigo Janot, fez um requerimento ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela suspensão do licenciamento ambiental da usina para garantir a proteção aos isolados cujo conhecimento pela Funai já se dava desde os anos 1980.
Apesar da Advocacia Geral da União (AGU) reconhecer a regularidade da usina, o MPF entrou com ao menos sete ações para barrar o funcionamento do empreendimento por falta do cumprimento de condicionantes e medidas obrigatórias para compensação aos danos causados às comunidades atingidas. A usina segue ativa.
Segundo o relatório da Funai, os Apiaká acreditam que os indígenas em isolamento com os quais compartilham o território sejam, na verdade, parentes que optaram pela vida autônoma em razão dos violentos contatos que culminaram em epidemias e mortes no início do século XX.
Terra Indígena Maró
Para os povos Borari e Arapium de Santarém (PA), foi declarada como de posse permanente a área de 42,3 mil hectares, cujos estudos para identificação também foram iniciados em 2008 e aprovados em 2011 pela Funai.
O MPF também atuou na região, a partir de Ação Civil Pública contra decisão judicial que havia declarado as duas etnias como “inexistentes”. A sentença foi anulada em 2016.
Segundo o RCID, nos últimos quatro séculos os Arapium e Borari foram impactados por diferentes frentes de expansão econômica, forçando os povos que sobreviveram aos primeiros contatos a estabelecerem relações marginalizantes com os colonizadores. Com a Constituição de 1988, em que se reconhece um Estado pluriétnico e se asseguram os direitos aos povos indígenas, é que essas populações puderam reconstruir suas narrativas de pertencimento e sua própria história.
Ainda segundo o relatório, “a integração dos indígenas na sociedade envolvente através da comercialização de produtos como a farinha é descrita pelos cronistas que passaram pelo Baixo Tapajós nos séculos XVII e XVIII, e permanece até os dias atuais. Ressalta-se que a diferença latente para os Borari e os Arapium nessa relação interétnica é o modo coletivizado de uso da terra e de sua produção agrícola, muito distinta das que estão sendo requeridas por outras populações vizinhas do oeste paraense.”
As populações da TI Maró seguem a tradição de produção das suas roças, nela baseando sua principal atividade econômica. A relação com a floresta, a caça, a pesca e a coleta para fins alimentares e medicinais continuam sendo atividades essenciais para sua existência e se baseiam na troca com os seres que habitam a floresta.
Terra Indígena Cobra Grande
Foi em 2008 que os estudos para identificação dos 8,9 mil hectares, agora declarados como de posse permanente dos povos Arapium, Jaraqui e Tapajó pelo MJSP, foram iniciados.
Segundo o RCID, os povos Arapium, Jaraqui e Tapajó sofreram um processo, iniciado por volta de 1800, de tentativa de apagamento dos modos tradicionais e de seu reconhecimento como indígenas. Neste contexto, apenas nos anos 1970 que as comunidades passaram a requerer - tardiamente - seus direitos.
“A continuidade da história indígena no vale do rio Arapiuns se manifesta, sobretudo, nas dimensões elementares de seu modo de vida atual. É evidente tanto em sua economia tradicional mista quanto em suas formas de organização sociopolítica e cosmológica”, afirma o relatório.
Entre as pressões contra o território, está a construção da rodovia estadual PA-257, em 1980. Situada em área limítrofe, a rodovia intensificou o avanço irregular de fazendas de gado, extração madeireira e pequenos loteamentos.
Em 2013, as comunidades começaram a construir um consenso em torno da proposta de delimitação e a construir a implementação de um plano de bem-viver, buscando a proteção e a gestão sustentável do território, enquanto aguardavam o reconhecimento oficial, conforme aponta o relatório. Desde 2015 o processo não andava.