Iniciativa tem incidência inédita no município de Iporanga (SP), onde a merenda escolar será fornecida pelas próprias comunidades, com alimentos frescos e condizentes com seus hábitos alimentares tradicionais

"O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é um eixo fundamental para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional no país, calcado no emprego da alimentação saudável e adequada, compreendendo o uso de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis [...].”
O direito a uma merenda escolar que respeite a cultura e os hábitos alimentares saudáveis das crianças brasileiras é uma diretriz do Pnae, determinada pelo Ministério da Educação (MEC) por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Seus objetivos são múltiplos. Além da garantia da segurança alimentar e nutricional, a oferta de uma merenda escolar adequada tem por fim ainda a contribuição para a aprendizagem e o rendimento escolar dos estudantes, atuando como uma ferramenta para o desenvolvimento biopsicossocial das crianças que acessam a rede pública de ensino do país.
No entanto, entre determinação e realidade há um abismo. Estudo feito pelo Observatório de Alimentação Escolar (ÓAÊ), em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostra que, entre 2015 e 2019, 61% dos municípios brasileiros não atenderam ao limite de alimentos ultraprocessados na merenda escolar determinado pelo FNDE.
O contexto se torna ainda mais alarmante ao se considerar que a merenda escolar é a principal refeição para milhões de crianças brasileiras. Recorte do estado do Rio de Janeiro reflete esta realidade. Para a maioria (56%) dos estudantes da região metropolitana da capital fluminense, a alimentação feita na escola representa a principal refeição do dia. Os dados são da pesquisa "Conta Pra Gente Estudante - Grande Rio", divulgada em 2023 pelo ÓAÊ em parceria com a Ação da Cidadania.
O caso Yanomami
Se este cenário apresenta uma realidade delicada para as crianças que vivem na zona urbana e têm relativo contato com alimentos industrializados fora do ambiente escolar, o contexto se torna ainda mais agravado nas escolas localizadas em zonas rurais, principalmente naquelas situadas em territórios de povos e comunidades tradicionais.
Foi justamente assim que, em uma visita técnica à Terra Indígena Yanomami no ano de 2016, o Ministério Público Federal (MPF) constatou a relação entre a má nutrição das crianças e a alimentação fornecida pelas escolas locais. “Escassa, inadequada e descontextualizada, com muitos itens industrializados e enlatados, sem qualquer relação com a produção local e com a cultura da comunidade”, conforme consta em sua avaliação.
Ao analisar a situação, o MPF compreendeu que o fornecimento de alimentos para aquelas escolas consumia mais recursos em transporte e armazenamento do que com a compra de alimentos, de fato. Em razão das longas distâncias e da dificuldade de transporte, as comidas não chegavam ou já se encontravam vencidas ao chegar. Em contraponto, a produção local não era aproveitada na alimentação escolar.
Diante disso, foi montada uma comissão composta por instituições dos governos federal, estadual e municipal, movimentos e lideranças de comunidades tradicionais e organizações da sociedade civil numa tentativa de superar o desinteresse governamental e os entraves da legislação e fomentar a alimentação tradicional nestas escolas.
Ali nascia Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), berço do que viria a ser a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil, instituída em 2021 e que tem por objetivo replicar a iniciativa iniciada no estado do Amazonas em todo o país. Atualmente já existem 16 Comissões instaladas em 15 estados da federação e outras quatro em fase avançada de criação.
Como resultado foi editada uma nota técnica que considera que a produção tradicional de alimentos pelos povos e comunidades tradicionais possuem modos próprios de controle de qualidade e conservação e se dedicam ao autoconsumo, o que adequa determinadas burocracias sanitárias e permite sua compra direta pelo poder público.




Iniciativa chega aos territórios quilombolas
Agora em 2024, desde sua criação, pela primeira vez uma Chamada Pública contemplou comunidades e escolas em territórios quilombolas com a compra de alimentos tradicionais pela Catrapovos no estado de São Paulo.
Ao todo, 179 crianças quilombolas serão beneficiadas pela iniciativa em oito escolas localizadas em sete comunidades: Quilombo Bombas, Quilombo Maria Rosa, Quilombo Nhunguara, Quilombo Pilões, Quilombo Piririca, Quilombo Praia Grande e Quilombo Porto Velho. A chamada pública ainda prevê o atendimento a 61 alunos não quilombolas da rede municipal de educação com o fornecimento de alimentos frescos.
Segurança alimentar, cultura e geração de renda
As questões nutricional e social são o foco da iniciativa. No entanto, ela abarca outro ponto fundamental para o desenvolvimento das comunidades, o econômico. Coordenadora da Associação dos Remanescentes de Quilombo de Praia Grande, Edilene Geralda de Matos reforça a importância de todos estes pilares.
“Para nós é uma satisfação muito grande operar a merenda por meio da Catrapovos Vale do Ribeira/SP em nossa comunidade. Esta é uma importante possibilidade de geração de renda que se abre para nós e, mais do que isso, é fundamental para manter nossa própria tradição, porque é da cultura do povo quilombola produzir seu próprio alimento. E ainda temos a garantia de que as crianças vão comer nossos alimentos tradicionais e saudáveis, livres de veneno.”



A proposta é que cada comunidade forneça alimentos para as escolas de seus próprios territórios. Esta circularidade reforça ainda mais a conexão entre as crianças, a comunidade e o território. É o que explica Ana Cláudia Ribeiro, mãe de dois alunos que estudam na Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental de Praia Grande e também fornecerá produtos de sua roça para a merenda.
“É uma graça para nós estarmos colocando o nosso alimento dentro da escola onde os nossos filhos estudam. E é bonita a participação da comunidade neste processo. Porque juntamos várias famílias para tratar das crianças que estão estudando. E temos a segurança de que elas vão se alimentar das nossas comidas tradicionais e orgânicas.”
Regianí Benedita Afonso é merendeira da rede municipal de ensino de Iporanga. Em sua avaliação, a Catrapovos é muito benéfica para todos que se relacionam com a iniciativa. “Como merendeira, acho superimportante a questão do alimento natural para as nossas crianças. Sempre preparamos tudo o que chegava com muito amor e carinho, mas agora vai ser muito melhor. Esta relação de todos na comunidade também fica bem mais estreita. É bom para todos.”
No caso de Iporanga, a chamada pública foi possível muito em razão do empenho da nutricionista Mariana Camargo Relva da Silva, que há mais de dez anos cuida da gestão nutricional da alimentação das unidades escolares do município.
Para além da importância crucial da oferta de alimentos frescos aos cerca de 240 estudantes que serão impactados pela iniciativa, a nutricionista reforça a relevância estratégica da Catrapovos para o futuro das escolas nos territórios quilombolas de Iporanga.
“O fortalecimento da escola é um dos nossos maiores objetivos. Com poucos alunos, como é o caso desta unidade, a possiblidade de fechamento da escola é muito grande. Então, com este vínculo mais aproximado e com a economia se movimentando em torno da escola, todos começam a ter mais esperança na escola. A comunidade tem a ganhar em todos os aspectos”, revela.
Assessor técnico do Instituto Socioambiental (ISA), Carlos Ribeiro explica que foi necessária grande articulação das associações das comunidades quilombolas do município, entidades parceiras e a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) com a Prefeitura para a viabilização da Chamada Pública em consonância com a nota técnica orientativa do MPF.
E ele resume a importância da iniciativa. “A Catrapovos Vale do Ribeira/SP é importante para as comunidades porque respeita a cultura alimentar das crianças, porque garante a entrega de alimentos frescos e saudáveis nas escolas, além de ser uma ferramenta de garantia da segurança alimentar, de geração de renda local para as famílias e, por fim, de fortalecimento do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira, patrimônio cultural brasileiro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).”

