Realizado na Terra Indígena Wawi, o II Encontro de Educação Escolar Indígena reuniu cerca de 300 professores, estudantes e lideranças para fortalecer saberes, escolas, territórios e sistemas alimentares
Em maio, na Escola Estadual Indígena Central Kamadu, Aldeia Tuba-Tuba, Território Indígena do Xingu (TIX), as aulas acontecem no roçado. O calendário escolar segue o ritmo da vida comunitária: os alunos acompanham suas famílias nas atividades de plantio, pesca e coleta na floresta.
“A gente respeita o calendário tradicional indígena. Essa é uma aula prática, prevista no nosso currículo”, explica o professor Karin Juruna. Ao final das atividades, os alunos apresentam um relatório. “Tudo isso é aula. Tudo isso é saber, é prática cultural, porque estão aprendendo com a família. Assim entendemos o funcionamento da escola”, completa.
Assista ao vídeo do cineasta Kamikia Khisêtjê:
Na Aldeia Nyarazul, a professora Vilma José Sabino Kamayurá e seu marido, Wary Sabino Kamayurá, desenvolvem um projeto na sala anexa da Escola Estadual Indígena Central Leonardo Villas Bôas. Dentro da disciplina “Saberes e Ciências Indígenas”, a sala de aula se estende até as roças, onde os alunos aprendem na prática a preparar o solo e entender os ciclos do plantio a partir dos conhecimentos tradicionais do povo Aweti.
“O tempo certo de plantar, de colher. Essa ciência indígena a gente não acha no Google”, reflete Vilma. O resultado é fartura: os alimentos vão para os alunos e ainda são doados às aldeias próximas.
Esses e outros exemplos de como a cultura e os sistemas agrícolas indígenas podem estar nas escolas foram apresentados durante o II Encontro da Educação Escolar Indígena do TIX - Saberes para o Bem Viver, que aconteceu entre 9 e 12 maio no Terra Indígena Wawi, TIX, no município de Querência (MT).

O evento foi organizado pela Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX), com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – por meio do Projeto Xingu –, do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI Xingu) e da Funai (Coordenação Regional do Xingu).Participaram das conversas a Secretaria de Estado da Educação do Mato Grosso (Diretoria Regional de Educação - DRE Barra do Garças), o Instituto Federal do Mato Grosso, a Eco Universidade, a Imaginable Futures, entre outros parceiros.
Recebidos pelo povo Khīsêtjê, na aldeia Khikatxi, representantes dos 16 povos do Xingu se reuniram para discutir os caminhos da educação indígena e construíram, de forma coletiva, a Carta do Encontro, que propõe a valorização dos saberes ancestrais e dos princípios do bem viver no contexto escolar.
O coordenador de Educação da Associação Terra Indígena Xingu (ATIX), Kussugi Bruce Kuikuro, explica que o encontro promoveu a escuta de professores, caciques e lideranças para a construção de Projetos Político Pedagógicos Indígenas (PPPIs) específicos para cada um dos povos do TIX. “O tema central é saberes para o bem viver, ou seja, a escola tem que andar junto com os nossos saberes tradicionais. A escola é para fortalecer a nossa cultura”, resume.
Na carta, a Coordenação da Educação da ATIX aponta que a política educacional deve unir escola, cultura, agroecologia, saúde e soberania. Entre outros pontos, o documento reivindica a implementação dos PPPIs e da política do Território Etnoeducacional do Xingu.


Além disso, a carta destaca a importância de incluir o alimento tradicional nas escolas como forma de fortalecer os sistemas agrícolas e os saberes milenares indígenas. Também denuncia os graves desafios enfrentados pela agricultura indígena diante das mudanças climáticas, da perda de sementes nativas e do uso intensivo de agrotóxicos nos monocultivos que cercam os territórios.
“É inaceitável que nossos alunos recebam alimentos industrializados enquanto os roçados tradicionais sofrem para produzir. Queremos políticas públicas específicas para apoiar a agroecologia indígena, fortalecer os sistemas alimentares próprios, adaptar os roçados às novas realidades climáticas e garantir que a alimentação escolar reflita e valorize a diversidade e a força dos nossos povos”, reforça o documento.
Os sistemas agrícolas indígenas são milenares e compostos por um conjunto de saberes sofisticados que possibilitam a produção de alimentos e, ao mesmo tempo, mantêm a floresta em pé. É esse sistema, ao mesmo tempo ancestral e inovador, que os indígenas querem que esteja na sala de aula.
Tradicionalmente, esses conhecimentos são transmitidos oralmente de geração em geração, enquanto as atividades estão em curso — nas trilhas até a roça, durante as coletas na floresta, a caça ou a pesca.
A perda de variedades, longos períodos de seca e ataques de animais são alguns dos impactos criados pelas pressões dos sistemas econômicos predatórios, como o agronegócio que avança nos limites do TIX, e as mudanças climáticas. Com isso, os saberes estão sendo ameaçados. A escola pode, neste contexto, ser espaço de fortalecimento desses conhecimentos e do território, apoiando no repasse de saberes indígenas aos mais jovens.
Na carta há demandas que serão encaminhadas para as Secretarias Municipais de Educação, Secretaria de Estado da Educação do Mato Grosso, Ministério da Educação - MEC e parceiros.

Bruce Kuikuro explica que a educação escolar indígena diferenciada está assegurada na Constituição e também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, mas não é colocada em prática pelo poder público. Exemplos como os citados não se repetem em todas as comunidades.
Sobre a alimentação, ele lembra que, quando era estudante, recebia na escola beiju, peixe, banana e abóbora. “Hoje em dia não está sendo assim. As crianças de hoje estão mais acostumadas a consumir, infelizmente, alimentos da cidade. Temos que decolonizar isso. Buscar solução. Oferecer a alimentação tradicional também é uma forma de educar as crianças”, diz.
Diretor da Escola Estadual Indígena Central de Educação Básica Khisêtjê, Yaconhongráti Suyá explica que, em boa parte do ano, a merenda escolar é formada por alimentos tradicionais como mandioca, polvilho, farinha, peixe, caça, batata, mel, pequi, murici, macaúba e cana, mas há períodos em que é necessária complementação de alimentos adquiridos nas cidades, como arroz, feijão, cebola, maçã, bolachas, entre outros. “Há épocas de colheita, que a escola recebe mais a alimentação tradicional. Em outras épocas, precisamos de complementação”, informa.
Oficina de merendeiros e merendeiras

A atividade reuniu os merendeiros que atuam nas escolas do TIX e nutricionistas do DSEI em um espaço de troca entre os saberes indígenas e não indígenas, com foco na alimentação saudável. Foram ensinadas receitas como temperos naturais à base de alho e cebola e até beiju colorido, preparado com cenoura e beterraba.
Nas comunidades, a entrada de ultraprocessados têm sido um problema, conforme indica trabalho desenvolvido pela Unifesp - Projeto Xingu que, entre os anos de 2017 e 2019, realizou uma série de exames médicos que constatou o aumento de problemas como diabetes e pressão alta, doenças ligadas a pressões sobre o território, o que interfere em hábitos alimentares e modos de vida. Na apresentação desse estudo, a educadora Rosana Gasparini trouxe informações sobre alimentação saudável, explicando as classificações de alimentos in natura e minimamente processados, processados e ultraprocessados.
No encerramento do encontro, as cozinheiras e os merendeiros foram aplaudidos de pé. “Os merendeiros e as merendeiras são tão educadores quanto os professores. Principalmente quando se fala em cultura alimentar. Através das mãos deles é que vão resgatar e preservar essa cultura”, afirma a nutricionista Sônia Mendonça, do DSEI Xingu, que conduziu a oficina.
Adequação das políticas públicas às necessidades dos povos indígenas
A antropóloga no ISA, Luisa Tui explica que os povos do TIX vêm apontando os sistemas alimentares como centrais em seus modos de vida. Em visita às aldeias realizadas em 2022 e 2024, a consultora do ISA Angelise Nadal Pimenta e Luisa Tui promoveram um processo de escuta dos indígenas sobre as roças e a alimentação tradicional das escolas.
Um tema recorrente nas respostas foi o impacto das mudanças climáticas e das pressões do agronegócio sobre os territórios, afetando diretamente a produção de alimentos — com perdas significativas de sementes e variedades tradicionais.
“Esses sistemas são uma ferramenta para proteção do território e para fortalecer os modos de vida, valorizar os saberes tradicionais, e também são um caminho para apoiar na construção das escolas mais adequadas e respeitosas aos povos do TIX”, reflete a antropóloga.
Luisa Tui aponta que políticas públicas de aquisição de alimentos, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), são um caminho para o fortalecimento dos sistemas agrícolas tradicionais, possibilitando que os produtos das roças sejam entregues nas cantinas escolares, inclusive gerando renda para as comunidades.

As conversas para a adequação dessas políticas à realidade dos povos indígenas, como os TIX, e demais comunidades tradicionais vêm sendo conduzidas pela Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos (Catrapovos) do Mato Grosso, com amplo diálogo com o poder público e parceiros, entre eles o ISA e a ATIX.
Na abertura do encontro, o articulador territorial do ISA, Marcelo Martins, observou que esse é um movimento importante para o fortalecimento das roças, favorecendo a alimentação tradicional. “A gente sabe que alimentação tradicional é saúde e envolve também a cultura e os modos de vida”, disse.
Marcelo Martins também apontou a ampla participação de educadores, indicando o fortalecimento da pauta da educação indígena. “Há uma preocupação com os jovens que saem de suas aldeias para estudar. Primeiro tivemos a implantação do ensino médio, mas vê-se também a necessidade de implantação de universidade e ensino técnico e outras oportunidades dentro do território”, explica.
Angelise Pimenta traçou um histórico da educação e da alimentação escolar no TIX, apontando que o território é pioneiro em promover a entrega de alimentos das roças. Hoje o TIX tem aproximadamente 160 aldeias, sendo que 89 têm escolas que atendem cerca de 2.700 alunos.
Durante o encontro, aconteceram diversas manifestações culturais, como cantos e danças. O professor Makaulaka Mehinako, da Comunidade A´lo Kaupuna, propôs uma quebra de protocolo e chamou à frente todos os cantores presentes. Em seguida, observou que junto a mestres e doutores da educação formal, havia também cantores, lutadores e mães de família.
“Para nós, essas pessoas são como os doutores e pós-doutores. Precisamos fazer esse reconhecimento para que os não indígenas entendam”, disse.
O registro do evento foi feito pelos comunicadores indígenas Kamikia Khisêtjê e Renan Suyá e Crispim Khisêtjê, comunicadores da Rede Xingu+, com divulgação nas redes da Associação Indígena Kisedje (AIK) e da ATIX.
Durante o encontro foi exibido o filme Sukande Kasáká | Terra Doente, dirigido por Kamikia Khisêtjê e Fred Rahal e premiado como o melhor curta-metragem brasileiro no festival É Tudo Verdade 2025. O filme mostra a pressão sobre o TIX do agronegócio, com o agrotóxico contaminando o solo, a água e os alimentos, e trazendo sérias ameaças para a saúde das comunidades.