Presidente no CNS classificou momento como uma renovação de aliança pela defesa dos territórios e das políticas climáticas justas
Nos dias 22 e 23 de outubro, o Centro Cultural dos Povos da Amazônia, em Manaus, foi palco de um encontro histórico. O I Fórum Socioambiental de Políticas Climáticas no Amazonas reuniu mais de 80 pessoas entre lideranças indígenas e de comunidades tradicionais, representantes da sociedade civil, instituições de pesquisa, órgãos governamentais e parceiros técnicos para debater os caminhos da agenda climática no estado - e no país.
Organizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com o Memorial Chico Mendes, o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), redes e instituições locais, o evento buscou construir um espaço de diálogo e troca de experiências, destacando o papel dos povos da floresta na manutenção dos ecossistemas e na regulação do clima global.
Ao longo de dois dias, oito mesas temáticas guiaram as discussões, abordando desde os desafios e oportunidades dos projetos de carbono e dos pagamentos por serviços ambientais até experiências de governança climática e financiamento para uma transição justa.
As conversas também promoveram o intercâmbio de experiências como o projeto pioneiro de REDD Suruí, em Rondônia, o Sistema de Incentivos por Serviços Ambientais (SISA), do Acre, e o programa jurisdicional de REDD+ do Pará, com a presença de Ronaldo Amanayé, da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), e ainda modelos de parceria com a iniciativa privada, como o caso da empresa franco brasileira, VEJA.
Para o presidente do CNS, Júlio Barbosa, o encontro representou “um novo empate” - uma aliança renovada entre indígenas, extrativistas e quilombolas pela defesa dos territórios e do meio ambiente, inspirada na estratégia criada pelos extrativistas do Acre para impedir o desmatamento.
O que foram os “empates”
Entre as décadas de 1970 e 1990, seringueiros do Acre criaram o empate, uma forma pacífica de resistência ao desmatamento. Organizados por sindicatos, famílias inteiras se colocavam diante dos peões e jagunços para impedir a derrubada da floresta, dialogando numa tentativa de convencê-los a parar. Lideranças como Wilson Pinheiro e, depois, Chico Mendes, marcaram o movimento, que realizou 45 empates até 1988 e se tornou símbolo da luta extrativista pela defesa da floresta.
“Nossos territórios são instrumentos essenciais de equilíbrio climático. Eles precisam ser valorizados, porque é lá que se produz biodiversidade e se mantém o clima mais saudável. O Estado precisa reconhecer e apoiar quem mantém a floresta em pé”, afirmou Júlio.
A fala resume o consenso entre os participantes: políticas climáticas eficazes precisam reconhecer o protagonismo dos povos que há séculos manejam e protegem as florestas, valorizando seus modos de vida e seus conhecimentos.
De Rondônia, o líder do povo Paiter Suruí, Almir Suruí, reforçou a importância de unir o conhecimento tradicional à ciência ocidental e alertou para os efeitos concretos das mudanças climáticas na Amazônia.
“Ano passado, a Amazônia praticamente não produziu castanha. Isso é efeito direto das mudanças climáticas. Precisamos de políticas públicas que fortaleçam nossos modelos de agrofloresta e sustentabilidade, com apoio técnico e financeiro, para garantir a vida na floresta e fora dela”.
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Almir participou da mesa sobre mapeamento de projetos de carbono florestal na Amazônia e compartilhou a experiência do Projeto Carbono Suruí, liderado pelo povo Paiter na Terra Indígena Sete de Setembro - pioneiro no Brasil como iniciativa indígena de comercialização de créditos de carbono certificados, destacando-se pelo protagonismo da comunidade na concepção e gestão.
Já a experiência da construção do Sistema de Incentivos aos Serviços Ambientais do Acre foi analisada pela Secretária dos Povos Indígenas do Acre, Francisca Arara, junto com representantes da sociedade civil que têm participação na governança do sistema. Francisca explicou sobre a definição da repartição de benefícios e como vem sendo implementada essa agenda, assim como os desafios de se levar esse debate para a população, mostrando que os serviços ambientais são aliados do desenvolvimento econômico sustentável.
Carbono no Amazonas
Durante o evento, o diretor-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Henrique dos Santos Pereira, apresentou um panorama histórico e conceitual das políticas climáticas do estado, destacando a trajetória do Amazonas na formulação de instrumentos como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e os programas de REDD+.
Segundo ele, o estado foi pioneiro na criação de uma política estadual de serviços ambientais, mas enfrenta hoje fragilidade institucional e contradições em sua implementação, especialmente por ter “transferido” para a iniciativa privada a captação e o gerenciamento de projetos de carbono.
Henrique também destacou a importância de distinguir o mercado regulado de carbono, previsto nas convenções internacionais, do mercado voluntário, que tem sido foco de fraudes e carece de regulação estatal.
Também presente no evento, o procurador da República do Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas, Fernando Beloto, ressaltou o papel do órgão na defesa dos direitos socioambientais e climáticos. Ele informou que mais de 300 processos relacionados a questões ambientais tramitam atualmente no estado, citando casos como o do potássio no território Mura, os projetos de carbono em Carauari e a exploração de gás.
No debate sobre como os projetos de carbono estão chegando às comunidades, lideranças do Amazonas relatam assédio de empresas, cooptação de lideranças e contratos abusivos ou pouco transparentes sobre direitos e deveres das comunidades.
A liderança extrativista Natália Nascimento, da Associação dos Moradores do Baixo Riozinho (Asmobri), em Carauari (AM) - caso citado pelo MPF -, relatou a situação de uma empresa que iniciou projeto no território com contratos abusivos, gerando conflitos internos e irregularidades no processo.
Segundo ela, ainda que o projeto tenha sido suspenso após denúncias das comunidades, as pressões continuam, com tentativas de forçar lideranças a assinar acordos para reverter a decisão do Ministério Público Federal.
“Eles ligam 24h. Quando a gente não atende, mandam áudio, texto, dizendo que querem negociar, ‘mas se eu não quiser, que depois não me arrependa’. Eu entendo isso como uma ameaça”, afirmou.“Quando grandes empresas tomam a frente com o discurso de salvar o mundo, quem sempre cuidou da floresta passa a ser tratado como invasor", finalizou Natália.
A vice-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Janete Alves, relatou que, na Terra Indígena Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia, um projeto de carbono firmado do lado colombiano resultou em invasões de roças no lado brasileiro, já que os contratos impediam as comunidades de abrir novas áreas em seus próprios territórios.
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Segundo Janete, empresas também têm se aproximado de comunidades brasileiras. Ela explica que, futuramente, as comunidades podem avaliar a possibilidade de desenvolver projetos, mas somente após capacitação e construção das iniciativas a partir dos próprios territórios, seguindo os protocolos de consulta, a organização política e os PGTAs.
“É um processo que exige paciência, porque precisamos discutir melhor, temos muitas preocupações e também precisamos nos capacitar, além de ouvir as experiências dos outros parentes”, concluiu.
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Oportunidades e caminhos
Corroborando com o pensamento das lideranças indígenas e extrativistas, o presidente do INPA destacou que a crise pode se transformar em oportunidade para movimentos sociais, organizações da sociedade civil e academia influenciarem os rumos das políticas climáticas.
“Podemos construir, com a participação efetiva do Estado e das comunidades, ambientes mais seguros juridicamente, confiáveis e com protagonismo local, garantindo que os serviços ambientais prestados pelos povos e comunidades sejam de fato reconhecidos e compensados.”
Henrique defendeu também a reconexão entre as agendas de biodiversidade, agrobiodiversidade e clima, lembrando que o Amazonas abriga tesouros genéticos únicos, como o guaraná, o cupuaçu, a mandioca e o abacaxi, que são espécies fundamentais para a segurança alimentar global.
“Um dos mais importantes serviços ambientais prestados pelos agricultores indígenas e tradicionais é a conservação da agrobiodiversidade. O Amazonas tem um potencial imenso e precisa transformar essa riqueza em política pública, com base na valorização de quem conserva.”
Na mesma direção, o líder extrativista Júlio Barbosa destacou o papel estratégico dos territórios tradicionais na resposta à crise climática. Segundo ele, as reservas extrativistas e demais áreas comunitárias são instrumentos essenciais de equilíbrio climático e devem estar no centro das políticas públicas.
“Hoje temos mais de 60 reservas extrativistas na Amazônia, uma imensidão de florestas, e mais de 50 milhões de hectares de terras públicas ainda sem destinação, vulneráveis à grilagem e à violência. Os nossos territórios são instrumentos importantes de adaptação às mudanças climáticas, mas precisamos de uma política de valorização dos produtos da biodiversidade”, afirmou.
Para o presidente da Foirn, Dário Baniwa, o reconhecimento do manejo e dos conhecimentos tradicionais é fundamental para uma estratégia climática eficaz no país. Ele defende que o Estado valorize a organização e a sustentabilidade desenvolvidas nos territórios, garantindo benefícios coletivos aos povos indígenas.
O líder também destacou a urgência de mecanismos diretos de financiamento climático, livres de intermediários e baseados nos planos de gestão territorial e ambiental, em vez do mercado de carbono. “Sem os povos indígenas, não há floresta em pé. E sem a floresta, não há futuro para o planeta.”
Dário ressaltou ainda que negócios socioambientais comunitários já fortalecem a economia local e a preservação da natureza, e que as políticas públicas devem respeitar os protocolos de consulta e garantir participação efetiva das comunidades em todas as etapas.
Amazônia no centro da agenda climática
Juliana Radler, analista de políticas socioambientais do Programa Rio Negro do ISA, destaca a parceria do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) e da Foirn e o apoio do Banco Mundial, da Rainforest Foundation Norway, da Aliança pelo Clima da Áustria e Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Amazonas para a realização do Fórum que, às vésperas da COP30, que ocorrerá entre 10 e 21 de novembro, em Belém (PA), se consolidou como um marco de articulação regional e política.
“Pela primeira vez reunimos lideranças de Rondônia, Acre, Pará e indígenas e extrativistas de todo o gigante Amazonas para discutir as políticas climáticas em Manaus, junto com especialistas da Academia, sociedade civil, governo e iniciativa privada. Essa reunião de mais de 40 lideranças extrativistas e indígenas demonstra a importância da governança e da autonomia desses povos em seus territórios”.
Para Juliana, o evento simboliza o fortalecimento da voz dos povos da Amazônia na construção de políticas de mitigação e adaptação justas e decoloniais. “Não podemos deixar que apenas o mercado financeiro dite os rumos do mercado de carbono. É preciso garantir que ele seja de fato decolonial, com justiça social e climática. Só haverá justiça climática se houver justiça social”, concluiu.
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