No total, Terras Indígenas em diferentes etapas de reconhecimento somam quase 7 milhões de hectares, extensão maior que o estado da Paraíba. Confira quais são
Na conferência da ONU sobre mudanças climáticas que deve ter a maior participação dos povos originários da história, a COP30, em Belém (PA), o governo avançou nas demarcações de 38 Terras Indígenas (TIs). O conjunto de medidas soma quase 7 milhões de hectares, extensão maior que a do estado da Paraíba, beneficiando mais de 40 grupos espalhados por todas as regiões do país.
Entre atos já publicados e anúncios que ainda serão oficializados nos próximos dias, ao todo, quatro TIs serão homologadas; outras dez foram declaradas pelo Ministério da Justiça; seis áreas terão seus limites identificados; e sete terão grupos técnicos de identificação criados (saiba como é o processo de demarcação). Foram divulgadas ainda a criação de dez Reservas Indígenas (RIs) e a renovação da portaria de restrição de uso e ingresso a uma área de povos isolados, procedimentos um pouco diferentes dos mais usuais (veja a lista mais abaixo).
Desde o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência (2007-2010), não havia um número de demarcações parecido. O ritmo caiu muito nos últimos 20 anos, desabando no governo de Michel Temer, até os procedimentos serem suspensos definitivamente na gestão de Jair Bolsonaro. Eles foram retomados lentamente neste terceiro mandato de Lula (veja tabela).
As medidas podem ser consideradas históricas também por serem tomadas na primeira conferência internacional do clima realizada na Amazônia, com expressiva participação dos povos originários, em razão dos seguidos ataques aos seus direitos sobretudo no Congresso nos últimos anos e das violências cometidas em seus territórios – a exemplo do assassinato do líder indígena Vicente Vilhalva, no Mato Grosso do Sul, no último fim de semana.
A importância dos anúncios foi reforçada pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, em cerimônia realizada nesta terça (18/11), no Pavilhão Brasil, da Zona Verde da COP30. “Nós vamos terminar a COP30 [...] com esse reconhecimento da demarcação das Terras Indígenas como a medida mais eficaz para enfrentar a crise climática”, defendeu.
“Demarcação já” também foi uma das principais pautas do movimento indígena na Marcha Indígena Global que tomou as ruas de Belém, na manhã da segunda-feira (17/11), sob liderança da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) e que contou com a participação de povos vindos do exterior.
Sonia e o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Guilherme Boulos, participaram da mobilização e reforçaram o compromisso do governo com as demarcações. Em seu discurso de abertura da COP, na semana passada, Lula já havia sinalizado com a possibilidade das medidas.
“Esse já é um legado da COP30. As portarias e decretos editados promovem um avanço histórico nas demarcações, dando um rumo de solução para antigas pendências”, avalia o sócio-fundador e presidente do Instituto Socioambiental (ISA), Márcio Santilli.
Este também é o maior pacote relacionado a territórios indígenas da atual gestão de Lula até o momento. Os últimos anúncios de homologação aconteceram durante a Marcha das Mulheres Indígenas, em agosto, em Brasília. As últimas declarações foram feitas há mais de um ano, quando sete TIs do povo Guarani foram assinadas pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. Em relação às portarias de identificação, o atual governo havia aprovado os estudos de apenas três territórios.
O Brasil possui agora 826 TIs: 72 TIs declaradas, 451 homologadas, 59 reservadas, 34 identificadas, 171 em identificação (8 delas com restrição de uso), além de 14 Reservas Indígenas (RI) em processo de regularização.
Terras Indígenas incluídas nas medidas
As RIs anunciadas são: Kanela Do Araguaia (MT), do povo Kanela; Crim Patehi (TO), do povo Kanela do Tocantins; Laklãnõ Xokleng (SC), do povo Xokleng; Valparaíso (AM), do povo Apurinã; Uty-Xunaty (RO), do povo Terena; Guajanaíra (PA) do povo Guajajara; Juruna do Km 17 (PA), do povo Juruna; Jenipapeiro (BA), do povo Atikum; Maturêba (BA), do povo Pataxó; Nazário e Mambira (CE), dos povos Potiguara e Tabajara.
Os sete Grupos Técnicos (GT) de identificação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) criados são das TIs: Nadëb (AM), do povo Nadëb; Maraguá-Mawé (AM), do povo Maraguá; Tuyuka (AM), do povo Kokama e Tikuna; Rio Paracuní e Curupira (AM) , dos povos Munduruku, Mura e Maraguá; Deni do Rio Cuniuá (AM), do povo Deni; Chandless (AC), dos povos Sharanawa e Mashco Piro; e Kanamari do Jutaí (AM), do povo Kanamari.
Passo importante na conservação
“Terras Indígenas são estratégicas para a manutenção da floresta em pé e proteção dos biomas. As TIs Kaxuyana-Tunayana e Aracá-Padauiri protegem sozinhas um total de 5,4 milhões de hectares na Amazônia”, afirma Tiago Moreira, pesquisador ISA. “Agora, estão mais próximas de terem o processo concluído e estarem asseguradas nas mãos dos povos indígenas”, comenta.
Moreira reforça que quando o processo de demarcação avança, aumentam as garantias para que os indígenas possam proteger e gerir seus territórios, aumentando a proteção também das florestas. Nesse caso, as demarcações fora da Amazônia tendem a trazer ganhos em termos de proteção para biomas que já perderam grande parte de sua vegetação original.
Fora da Amazônia Legal, as TIs estão entre as áreas mais preservadas em todos os biomas e o avanço e fortalecimento dos processos de demarcação tendem a ser acompanhados pela recuperação das florestas nestas áreas, como demonstra estudo do ISA.
Demora na demarcação
O tempo de espera médio desde o início do processo de demarcação das áreas abrangidas pelo pacote foi de 9,5 anos para as TIs identificadas, de 16,4 anos para as declaradas e de 30 anos para as homologadas. Há casos como os das TIs do povo Paresí, que chegaram a quase 40 anos.
“São lutas assim de muitos anos, de muitas mãos, de muitas vozes, de muitas pessoas, organizações que tiveram conosco para esse momento acontecer e hoje aconteceu”, celebrou Tipuici Manoki, cineasta da rede Katahirine e dos coletivos Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky.
Uma das causas pela lentidão nos processos de demarcação é a Lei nº 14.701/2003, conhecida como “Lei do Marco Temporal”, que estabeleceu uma série de restrições no procedimento de reconhecimento dos territórios.
Segundo a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, apesar do compromisso firmado em identificar o maior número de TIs possível, a meta só pôde começar a ser cumprida a partir da reestruturação do órgão indigenista.
“Compromisso esse que é muito difícil por conta das leis que foram aprovadas sem a nossa responsabilidade ou vontade, que é a (Lei) 14.701 que ainda emperra e demora os processos e que está para ser resolvida no STF. Nós temos muitas demandas para tentar proteger as Terras Indígenas, mas vontade política nós temos muita para avançar”, disse.
Violência
A demora no reconhecimento oficial é um dos motivos da violência contra os indígenas que se agravou nos últimos anos. É o caso das TIs Comexatibá e Tupinambá de Olivença, dos povos Pataxó e Tupinambá, no sul da Bahia, que enfrentaram uma série de ataques e assassinatos, além da pressão da especulação fundiária em uma das áreas mais valorizadas para o turismo no país.
Segundo o relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de 2024, o Mato Grosso do Sul é o estado que mais concentra casos de violência contra os povos indígenas. O passivo na demarcação também é enorme. Na maior parte dos casos, as TIs estão ocupadas por fazendeiros e posseiros. Os povos Guarani Kaiowá e Ñandeva reivindicaram na COP30 a punição dos responsáveis pelo assassinato de Vicente Vilhalva, no último domingo, na TI Iguatemipeguá I, em Paranhos (MS).
O povo Guarani Ñandeva comemorou o avanço no processo da TI Ypoi-Triunfo. “Ficamos felizes e ao mesmo tempo com medo, porque sabemos que quando os fazendeiros recebem esses tipo de notícia, nós também temos que tomar cuidado porque ficam bravos”, afirmou Holanda Vera, liderança da área, onde em 2009, os professores Genivaldo e Rolindo Vera foram assassinados.
Com a campanha #DemarcaYvyrupa desde 2023, a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização que congrega os coletivos guarani do Sul e Sudeste brasileiro, reivindicava o avanço no processo de demarcação de TIs sem pendências.
As TIs Pakurity, Sambaqui, Ka’aguy Hovy e Ka’aguy Mirim, declaradas hoje, constavam na lista da campanha. Restam ainda três TIs a serem homologadas e 1 a ser declarada. “Para nós é um momento de muita importância que a gente vem receber e fazer essa entrega também para o nosso povo”, afirma Kerexu Yxapyry, liderança da CGY. “A gente tem feito um trabalho, tem feito uma luta, uma articulação para garantir os nossos territórios regularizados nos nossos estados”, complementou.
A Apib e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) também capitanearam mobilizações com a mesma reivindicação, como a do dia 14 de outubro, em Brasília. Os indígenas cobraram de Lula e do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a conclusão dos processos de demarcação e o cumprimento das promessas de campanha, para que essa COP fosse de fato a da implementação, como defendeu o presidente.
Proteção a isolados e justiça de reparação
O pacote inclui territórios com a presença de povos isolados, como é o caso das TIs Kaxuyana-Tunayana (PA) e Chandless (AC), com a presença do povo Mashco Piro.
Para Angela Kaxuyana, da Coiab, a homologação representa ainda um importante passo na reparação e reconhecimento do Estado das violações cometidas contra seu povo. “O meu território foi arrancado do meu povo na ditadura militar para dar lugar a grandes empreendimentos, mas nós resistimos, porque parte do nosso território sempre permaneceu povoado e resistente com povos indígenas isolados que lá permanecem. E hoje essa homologação também representa proteger os povos indígenas isolados, reconhecer a diversidade que somos, mas também o início da justiça para os povos indígenas”, defendeu.
Sobre a renovação da Portaria de Restrição de Uso para a Terra Indígena Tanaru, Fábio Ribeiro, coordenador-executivo do Observatório dos Povos Indígenas Isolados, destaca o ineditismo do caso. A TI pertence a “um povo que foi exterminado, o último sobrevivente faleceu em 2022 e a luta agora é que essa terra permaneça, como uma floresta em pé, como um lugar de memória”, ressaltou.
Saiba mais: Tanaru, o "índio do buraco" que viveu protegendo a floresta
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