‘Periferias no Combate ao Racismo Ambiental: Tecnologias de Sobrevivência e Luta pelo Bem Viver’ é uma realização do PerifaConnection, do bairro Jurunas, periferia de Belém (PA)
Sou uma mulher negra, nascida no interior de Rondônia e criada nas periferias de Porto Velho (RO). Foram muitos os endereços até minha família se estabelecer numa casa própria, construída em um terreno de “invasão”. Começo este texto em primeira pessoa, marcando meu território, assim como fazem os autores do livro Periferias no Combate ao Racismo Ambiental: Tecnologias de Sobrevivência e Luta pelo Bem Viver, que compartilham histórias capazes de criar conexões entre realidades tão distantes geograficamente, mas tão próximas em seus modos de vida e nos desmontes que as atravessam.
“Periferias no Combate ao Racismo Ambiental: Tecnologias de Sobrevivência e Luta pelo Bem Viver” é uma obra de distribuição gratuita. Para mais informações, entre em contato pelos canais do PerifaConection na internet clicando aqui.
“O racismo ambiental é um conceito territorial, de quem está vivendo a terra com marcadores sociais e de territorialidade”, diz trecho do texto que abre a obra. Lançado pelo PerifaConnection no dia 16 de novembro, no bairro Jurunas, periferia de Belém (PA), em meio à COP30, o livro reúne textos de jovens negros, periféricos e de territórios tradicionais que discutem o tema a partir da perspectiva de quem sente esse fenômeno na pele muito antes de ele se tornar conceito.
São relatos que revelam estratégias de adaptação, soluções construídas ao longo de gerações e gerações para garantir a sobrevivência de quem vive distante dos centros e dos privilégios do acesso a direitos básicos, como água potável, saneamento e até o simples banho de rio em águas não contaminadas ou acesso a um parque arborizado no bairro em que vivem.
Entre os autores, está Zica Pires, do território quilombola Santa Rosa dos Pretos, no Maranhão. Para ela, integrar a publicação ao lado de “outros irmãos, com outras belezas possíveis e viventes” é importante e também muito necessário, sobretudo porque pouco se sabe ainda sobre a realidade e perspectiva de afro-originários e quilombolas no Brasil.
Ela reforça que esses povos mantêm saberes antigos, construídos a partir da relação profunda com a natureza. “Nós não somos os atrasados. Pelo contrário: nos envolvemos tanto com a natureza que sabemos o princípio da vida”, afirma.
Participar da obra é também reafirmar um modo de existir que antecede e ultrapassa o pensamento ocidental de que outros modos de vida que fogem ao capitalismo exploratório são possíveis.
“Nós, pretos, existimos num lugar de entendimento de mundo comum, mas não é um mundo narrado a partir da utopia caucasiana que eles dizem ser uma utopia inalcançável. É mentira, porque esse mundo é real e nós o fazemos desde tantos séculos e lá ainda habitamos. Então, eu penso que, antes de qualquer coisa, é também fazer com que os outros vejam em si e em nós, os que lá na mata estão, que nós sabemos como é o futuro”.
Periferias no centro do debate
O evento ocorreu paralelamente aos dois lados da Rua Quintino Bocaiúva, dividida por um canal-que-ja-foi-um-rio, e integra a “Yellow Zone”, espaços descentralizados criados pela COP das Baixadas para descentralizar o debate climático e promover atividades culturais e debates sobre as soluções e impactos vividos pelas periferias junto às comunidades periféricas de Belém.
De um lado, o espaço multicultural Gueto Hub, onde ocorria a recepção com tacacá e vatapá quentinhos, e uma oficina de arte para crianças logo na entrada, organizada pelo CicloFavela, mostra itinerante de artes integradas.
Do outro lado, uma tenda com palco, microfone e cadeiras, margeados por mesas com doces e comidas sendo vendidas por moradores. A travessia entre os dois espaços logo foi facilitada pela conclusão de uma ponte feita pelos moradores ali na hora. Mais do que um lançamento, foi um encontro construído com a comunidade, marcado pela confluência de coletivos locais e de diferentes regiões do país, assim como é o livro.
Vindo de onde eu vim, não havia como não me conectar com aquele espaço – tão parecido com os que me constituíram – nem com as histórias compartilhadas no palco do evento e nos capítulos da obra.
As ideias e os conhecimentos produzidos pelas juventudes periféricas, urbanas e rurais, formam uma potência que não pode ser ignorada pelas decisões tomadas a portas fechadas em salas climatizadas. No livro, estão reunidos pensamentos de 18 autores de 11 territórios diferentes.
Essa potência se expressa na fala de Zica Pires, que vê no livro e na confluência dos territórios um gesto de afirmação coletiva diante de estruturas de exclusão. “Nós temos reforçado a nossa trincheira. Quando nós, quilombolas, indígenas e afro-originários, entendemos que é uma trincheira de vida contra uma ideologia de morte, entendemos o nosso lugar comum. Nós defendemos a vida”, afirma.
Oralidade como essência
A ideia da publicação, explica Thuane Nascimento, diretora-executiva do PerifaConnection e organizadora da publicação, ao lado da jovem ativista Karina Penha,co-fundadora do Amazônia de Pé, nasceu da percepção de que, embora a juventude periférica estivesse cada vez mais presente em mesas de debate, convidada para falar, gravar entrevistas e produzir conteúdo na internet, ainda não era reconhecida como produtora de conhecimento, apenas como quem repassa informações.
Thuane destaca que há uma diferença profunda entre informação e conhecimento. “A gente está nas periferias e também consegue compartilhar os saberes ancestrais que aprendemos com nossos mais velhos e mais velhas”, conta.
Um dos maiores desafios do processo foi encontrar tempo para parar e escrever. “A juventude está no corre. A gente tem muito o que falar, mas no dia a dia é difícil sentar e registrar tudo”, diz.
Mesmo quando jovens periféricos conseguem acessar espaços acadêmicos, acrescenta, ainda enfrentam processos de deslegitimação do conhecimento que produzem. Por isso, a equipe buscou um formato que respeitasse a oralidade, lugar onde, segundo ela, “a gente se garante”.
A solução surgiu na proposta da Editora Periferias: realizar entrevistas, transcrevê-las e transformá-las em textos corridos sobre os quais os autores pudessem trabalhar. “Encontrar alguém que garantisse essa estrutura escrita foi extremamente importante para que o livro existisse e pudesse ser entregue aqui na COP30”.
Thuane lembra que o método também foi inspirado em experiências anteriores, como o livro Mestres das Periferias, da própria Editora Periferias, que reúne nomes como Conceição Evaristo, Nêgo Bispo e Ailton Krenak. Essa referência, ela explica, somada ao aprendizado com pessoas mais velhas e ao apoio do Instituto Ibirapitanga, fortaleceu o processo editorial.
A diretora-executiva do PerifaConnection destaca que o livro chega ao público justamente no formato que a academia e a branquitude costumam exigir (estruturado, escrito e referenciado) mas sem abrir mão da essência periférica que o originou.
“Agora está disponível para quem quiser, acessível e democrático, para que todo mundo tenha acesso aos nossos conhecimentos, a fim de construir outro mundo no enfrentamento à crise climática”, afirma.
Lançar a obra durante a COP30 também tem um sentido político. Thuane vê no movimento da COP das Baixadas e na proposta das Yellow Zones um esforço de aproximar debates globais da população periférica, circulando conhecimento e cultura em territórios historicamente excluídos.
“É histórico trazer essa proposta e construir espaços para que as pessoas participem cada vez mais de momentos cívicos que considerem nossa cidadania, e para que a COP não seja um evento de exclusão”. Ao lado da Cúpula dos Povos, afirma Thuane, esse movimento tem sido muito bem-sucedido em democratizar a participação e afirmar o lugar das periferias no debate climático.
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