16ª edição da Feira de Sementes e Mudas Tradicionais dos quilombos do Vale do Ribeira celebra cultura, educação, segurança alimentar e resistência


Mais de 300 pessoas se reuniram em Eldorado (SP) para viver dois dias de partilha e celebração na 16ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, encontro que reafirma a força dos quilombolas da região e celebra o Sistema Agrícola Tradicional (SAT), guardião de sementes, histórias e modos de vida.
Nem o céu nublado atrapalhou as conversas, trocas e encontros, que acontecem todos os anos em agosto. A feira recebeu comunidades quilombolas de diferentes municípios da região, estudantes do ensino fundamental ao universitário, organizações sociais, parceiros e autoridades.
A 16ª edição é uma realização Grupo de Trabalho da Roça – GT da Roça, composto por 19 Associações das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira e parceiros como a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone) e o Instituto Socioambiental (ISA). Também apoiaram o evento o Sesc Registro e as Prefeituras de Eldorado, Iporanga e Itaoca.

Na manhã de 15/08, a feira se inaugurou ao som da palavra quilombola. Com o tema “Educação Quilombola, transmissão de saberes e os desafios da juventude nos territórios”, o seminário de abertura trouxe as vozes dos anciãos Benedita Santos Rocha, do Quilombo Maria Rosa, e João Catá, do Quilombo Nhunguara, guiados pela mediação de Luiz Ketu, do Quilombo São Pedro, escritor e co-autor de obras como Na companhia de Dona Fartura, uma história sobre cultura alimentar quilombola.
Com a proposta de consolidar ainda mais um processo de educação que considere os saberes dos mais velhos sobre o território como conhecimento, a mesa teve falas poderosas, que evidenciaram o compromisso com a cultura quilombola, em todas as suas formas.


“Como é importante a organização, convivência e união para a continuação do nosso antepassado. Eu aprendi muito com meus pais a cuidar da vida. Nós somos os guardiões do nosso território”, explicou Benedita. Segundo ela, seus pais não tinham a sabedoria do papel, mas sustentaram a família de forma abundante, ensinando o cuidado com a natureza e conceitos como sazonalidade e aproveitamento integral dos alimentos.
“Lá na Maria Rosa a gente aprendeu desde pequeno a plantar arroz, feijão, milho. Fomos nos formando na agricultura, na universidade do plantio. Os pais foram nossos professores", disse ela, que também aprendeu com os pais a fazer o plantio sem agrotóxico, cozinhar no fogão a lenha e a valorizar o lugar onde nasceu. Benedita, que aprendeu a escrever seu nome após os 30 anos, se orgulha por hoje dividir mesa com os professores.
Seu João da Mota, mestre no manejo da floresta, aproveitou o momento para relembrar sua primeira professora, Dona Zilda, em 1954, época em que as escolas ainda eram de pau a pique. E hoje eles continuam lutando para repassar aos mais jovens a importância do modo de ser quilombola, inclusive na questão de saúde, que Seu João fez questão de compartilhar: “Eu tenho 71 anos, nunca pousei num hospital, sempre remédio de ervas que eu tomo”.
Luiz Ketu, atualmente Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFScar), agradeceu pela resistência de ambos diante das dificuldades e ressaltou a importância de também abrir caminhos para outros espaços, como a universidade, que foram conquistados graças à luta das comunidades quilombolas aliadas às organizações locais, que motivaram a criação de políticas públicas de inclusão e protocolos de consulta. Para ele, a luta continua.
“A gente precisa fortalecer o território. Ter essa roda aqui envolvendo jovens, mais velhos e mais velhas, crianças faz parte de um processo de luta nosso”, disse em plenária.
Na plateia, estavam estudantes da Escola Estadual Alay Jose Correa Vereador, de Registro; Escola Estadual Nascimento Sátiro da Silva, de Iporanga; Escola Estadual Maria Chules Princesa de Eldorado, além das Escolas Municipais de Educação Infantil e Ensino Fundamental dos Quilombos Sapatu, André Lopes, Nhunguara, Ivaporunduva, Galvão, Cangume e São Pedro.


Haviam também estudantes de licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza da Universidade do Paraná (UFPR), e universitários da licenciatura em Educação Escolar Quilombola - Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), em turma composta por 30 estudantes quilombolas, sendo 90% delas mulheres, estavam em aula.
Benedita, ressalta a importância de que os futuros profissionais entendam cada vez mais a importância de voltar para os territórios. "É muito importante estudar. Fora da casa da gente é sofrido, mas é um sofrido compensado. Depois da formatura, ele volta com outro jeito de ver a realidade lá fora".
“A educação quilombola muda o mundo”
Na segunda mesa, “Os tempos de hoje e o futuro ancestral - começo, meio e começo”, Lorrayne Silva, do Quilombo André Lopes, fez a mediação junto com Vaniely dos Anjos Santos Dias, do Quilombo São Pedro, das falas das jovens lideranças Misael Henrique Rodrigues Dos Santos, do Quilombo Galvão; Ana Laura Donato dos Santos, do Quilombo Porto Velho; Letícia Ester França, do Quilombo São Pedro; e Niceia Santos, do Quilombo Maria Rosa.
Os participantes relataram que hoje tem o entendimento sobre o quanto a educação quilombola transforma, mas essa consciência nem sempre foi motivo de orgulho por conta da forma como as comunidades eram representadas no ambiente escolar.
"Os povos tradicionais, as comunidades quilombolas sofreram muito. Quantas pessoas deixaram de ter essa conversa nas escolas? Como alunos, era muito difícil para a gente trabalhar esses temas na sala de aula", lamentou Letícia Ester França em fala sobre racismo ambiental e a educação. Niceia Santos concorda: "Esse preconceito era sofrido também na escola. Eu não falava para os meus colegas que morava em quilombo, tinha vergonha. Mas os tênis estavam cheios de barro."
As lideranças ressaltaram que ações que exaltem a ancestralidade, os modos de ser e viver dentro dos quilombos, são estratégias para dar continuidade à cultura quilombola, e tudo isso passa pela valorização dos mais velhos.
"O conhecimento que eles [os mais velhos] têm, a gente enquanto jovem não tem dimensão disso. É um conhecimento do dia-a-dia, uma troca. No momento que a gente leva os conhecimentos ao território, a gente retorna às nossas raízes. A gente que forma o território", colaborou Misael Henrique, do Quilombo Galvão.
E formar essa consciência é lutar também por infraestrutura, por políticas públicas que cheguem e pela garantia de direitos fundamentais. Tudo isso passa pelo direito ao território. "Estamos abrindo portas, tendo a oportunidade de nos inserir cada vez mais nos espaços de discussão, de enfrentamento, de fazer política", destacou Vaniely dos Anjos Santos Dias.
Viviane Luiz, diretora de seis escolas quilombolas em Eldorado concorda. “Dentro dessa questão da educação como modalidade de ensino, perpassa questões do território, como o transporte escolar, como a merenda escolar. Então a alimentação está no cerne dessa discussão entendendo que a produção da roça, a produção da vida, ela se dá nos territórios quilombolas. E os quilombolas, tanto mulheres quanto homens, são os detentores desse conhecimento.”


Após o almoço, foi o momento das oficinas simultâneas. Para a confluência de saberes, o evento promoveu discussões sobre comida quilombola, sementes agrícolas e florestais e manejo integrado do fogo.
Alimento é identidade
A oportunidade de partilhar histórias e exaltar a cultura quilombola em torno das comidas é algo que se cria. E esse aspecto ficou explícito durante a mesa “Comida quilombola na escola: a experiência da política Catrapovos no município de Iporanga/SP”, que teve a apresentação de Carlos Ribeiro, assessor técnico do Instituto Socioambiental (ISA), Vanilda Donato, liderança do Quilombo Porto Velho, e Mariana Camargo Relva da Silva, nutricionista da prefeitura de Iporanga.
Os resultados do primeiro ano de implementação da Catrapovos, que abrange sete comunidades, oito escolas e 179 crianças impactadas, surpreenderam o público.
Para Vanilda Donato, ter uma educação que espelha a cultura dos pais e do território é essencial e, segundo ela, esse é um dos ganhos da Catrapovos, por possibilitar um novo olhar das crianças sobre o trabalho dos pais e ainda gera economia dentro da própria comunidade.
“Eu acho que o Catrapovos se tornou um caminho onde se encontrou território e educação, que, por muito tempo, esteve muito distante”, disse. “Se o alimento que o pai e a mãe produz é saudável, se é importante que o pai e a mãe produz, então, viver no território é importante”, completou Vanilda.


A nutricionista Mariana da Silva levantou também a questão dos alimentos industrializados. Por questões logísticas, servir alimentos frescos que chegavam de fora da comunidade era um desafio, o que abria espaço para refeições com altas adições de corantes, aromatizantes, emulsificantes e conservantes, que facilitam o aparecimento de doenças e afasta quem consome da cultura alimentar.
Com a Catrapovos, as sete escolas nos Quilombos Nhunguara, Maria Rosa, Pilões, Piririca, Bombas, Praia Grande e Porto Velho agora conseguem refeições frescas, saudáveis e cheias de histórias. Reeducação alimentar também é resgate cultural.
A implementação da política, a primeira incidência no estado de São Paulo, teve muitos desafios. Carlos Ribeiro explicou que houve um trabalho de apresentação e convencimento das lideranças das comunidades quilombolas e, em seguida, da prefeitura de Iporanga para aderir a esse projeto. Fazer um cardápio alinhado com a produção dos agricultores, fechar a logística de modo que as entregas semanais de alimentos frescos e seguros para consumo fossem garantidas esteve entre os desafios.
“Foram várias reuniões com a prefeitura, com a Secretaria de Educação para convencer sobre a importância desse projeto para o território e também para o município. A incidência começou em 2022 e a primeira chamada pública saiu em 2024. Teve um processo burocrático, desde criar o edital, o levantamento produtivo, como os alimentos seriam entregues nas escolas, então, tivemos bons resultados porque a nutricionista também abraçou isso. A nutricionista foi uma chave fundamental para esse projeto”, ressaltou.

O trabalho foi feito em parceria com os agricultores e as comunidades, entendendo processos de plantio e colheita, sazonalidade e formas tradicionais de fazer. A geração de renda é um dos resultados, principalmente para as mulheres, que são a maioria nesse projeto.
Carlos explica que foram entregues 55 produtos diversos, entre eles arroz do sistema agrícola, feijão, mandioca, farinha de mandioca, frutas e ovo caipira, tudo dentro do hábito alimentar quilombola.
A alimentação no currículo escolar, além de aproximar a criança do território, pode ser usada para ensino de outras matérias, como destacou Vanilda. “Você pode estudar a história do território, você pode estudar a geografia do território, onde que produz isso, onde que é melhor produzir, qual lua que é melhor produzir, você trabalha ciência, trabalha tecnologia, biologia, dá para trabalhar.”
Para além das matérias, fomentar a participação das mulheres, é também um ganho. Vanilda comemora: “quando a gente começou a levar as mulheres para formações, para salas de aula, dentro do movimento, dentro das reuniões, elas começaram a levar com elas os filhos. Então, a gente formou as mulheres e junto com ela formamos a criança”.
Paralelo a isso, as oficinas "Sementes agrícolas e florestais: desafios de conservação e manutenção de variedades", feita em parceria com a Embrapa, e "Manejo integrado do fogo programa Prevfogo", feito em parceria com o Ibama e com a presença da brigada, compartilharam experiências e mostraram a potência das comunidades quilombolas da região.


Aurico Dias, liderança do Quilombo São Pedro e integrante do GT Roça comemorou: “nós não deixamos a nossa cultura morrer, nós queremos que ela continue. E essa continuação é dos jovens, das crianças que estão na escola, então eles têm que aprender os dois lados, tanto falar na roça como sobreviver e na escola, na técnica na escola, para aprender a ler, escrever, aprender os direitos, né? Ter uma aprendizagem melhor, mas não deixa de ser lá da roça e aprender as duas coisas.”
O segundo e último dia foi um momento de pura celebração da cultura quilombola em toda sua essência. A Praça Nossa Senhora da Guia recebeu estandes com diversidade de comidas, artes, artesanatos, sementes e mudas. Na parte mais cultural, apresentações de danças, cantos, a tradicional poesia de Leonila Pontes, do Quilombo Abobral Margem Esquerda, e o puxirão, mostraram a beleza das gerações em harmonia.


Ao final, o evento reforçou que a educação, a roça, a memória e a ancestralidade caminham juntas, garantindo que o conhecimento, a resistência e a identidade quilombola floresçam em cada semente e palavra trocadas.