Análise do caso é iniciada um dia após senadores aprovarem emenda que incorpora tese ruralista à Constituição
O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento da chamada lei do marco temporal das demarcações das Terras Indígenas (14.701/2023), em duas sessões nas tardes destas quarta e quinta (10 e 11/12).
O ministro Gilmar Mendes leu um resumo de seu relatório e os autores das três ações que contestam a constitucionalidade da legislação e da ação que a defende fizeram suas sustentações orais. Organizações da sociedade civil que pediram para participar do processo, como o Instituto Socioambiental (ISA), também se manifestaram.
Ainda não há data marcada para a retomada dos trabalhos, com a apresentação dos votos dos ministros e a decisão final. O recesso do Judiciário começa no próximo dia 20, portanto, o tribunal tem só mais uma semana de atividades neste ano.
A análise do caso começou um dia após o Senado aprovar uma emenda que incorpora à Constituição o mesmo marco temporal. A história se repete, com parte do Congresso confrontando a Corte mais uma vez: em 2023, a Casa legislativa aprovou a lei no mesmo dia em que o STF concluiu um primeiro julgamento que declarou a inconstitucionalidade da interpretação jurídica ruralista.
De acordo com ela, os povos indígenas só poderiam reivindicar uma terra se conseguirem comprovar sua posse ou a disputa em campo ou na Justiça por ela em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese nega as expulsões e violências cometidas contras essas populações ao longo da história, inclusive nos anos anteriores à vigência da Carta Magna.
O processo de demarcação já é complexo e tende a ser demorado, durando décadas em vários casos. Se forem mantidos na legislação, na prática o marco temporal e os vários outros obstáculos ao procedimento previstos na lei vão inviabilizá-lo.
Tensão entre Poderes
A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023 aconteceu, na terça (9/12l), após o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), retirá-la da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e levá-la diretamente ao plenário, usando brechas do regimento da Casa.
A medida foi uma resposta de Alcolumbre à outra decisão de Mendes, da semana passada, que retirou o poder dos senadores de iniciar o impeachment dos ministros da Corte, restringindo a competência à Procuradoria-Geral da República (PGR). Ainda nesta quarta-feira, depois de negociações de bastidores, o ministro recuou em parte da determinação, restabelecendo a prerrogativa dos parlamentares.
De todo modo, a situação adicionou tensão nas relações já conflituosas entre os Poderes. A aprovação da PEC tende a influenciar o novo julgamento e indica que a novela sobre o tema terá mais capítulos, porque mesmo uma mudança na Constituição pode ser alvo de um novo questionamento no tribunal.
A atitude do Senado também pode ser considerada uma reação dos ruralistas às demarcações anunciadas pelo governo na COP30, a conferência internacional sobre mudanças climáticas realizada em Belém (PA), em novembro. No total, houve avanço nos processos de 38 TIs, entre homologações, declarações, identificações, abertura de grupos de estudo e portarias de interdição para indígenas isolados, somando quase 7 milhões de hectares.
Câmara de conciliação e sinalização
A PEC 48 estava parada na CCJ desde julho de 2024 por um acordo fechado pelo próprio Alcolumbre, então presidente do colegiado, para aguardar o resultado da câmara de conciliação instaurada por Mendes no Supremo sobre a Lei 14.701, envolvendo governo federal, estados, ruralistas e indígenas.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) retirou-se logo no início do processo, sob protesto pela disparidade de representação, entre outras razões. Afinal, após oito meses, a discussão não chegou a nenhum consenso, Mendes resolveu conclui-la, em abril, e pautar o julgamento sobre a lei mesmo assim.
A expectativa inicial do ministro era elaborar uma minuta de legislação alternativa à lei com base no debate. Sem o consenso necessário, não se sabe se optará agora por apresentar a proposta ou por um voto mais convencional, abordando apenas a constitucionalidade da Lei 14.701.
Embora não tenha dado indicações explícitas de como será seu voto na leitura do resumo de seu relatório, ao final da sessão de quarta ele sinalizou mais uma vez com a eventual proposta de novas restrições aos direitos dos povos originários.
“É um modelo [de demarcação atual] que obviamente provoca conflito e insurreição e resistência. Em suma, é esse o esforço que se tem feito para encontrar regras razoáveis em torno dessa temática”, comentou.
Durante a conciliação, Mendes chegou a apresentar para debate um anteprojeto de lei que trazia uma série de novos obstáculos ao procedimento demarcatório, e ia além, ao propor regras para a implantação de atividades e empreendimentos econômicos nas TIs por não indígenas, em linha com as posições de ruralistas, grandes empresários da mineração e do setor de infraestrutura. Diante das críticas do movimento indígena e de parte do governo, o minitro voltou atrás.
Sustentações orais
Alguns partidos e organizações que fazem parte do processo cederam espaço para que, no total, sete advogados indígenas fizessem as sustentações orais. De acordo com a Apib, esse é um fato inédito.
Em resumo, os representantes da entidade indígena, das organizações da sociedade civil aliadas e dos partidos de esquerda reforçaram que o STF já declarou a inconstitucionalidade do marco temporal e pediram que o mesmo seja feito com toda a lei. Também defenderam que os direitos territoriais indígenas são “indisponíveis”, fundamentais e cláusulas pétreas da Constituição, isto é, não podem ser alterados ou extintos.
“A Constituição institui um verdadeiro sistema protetivo composto por direitos
territoriais originários, proteção cultural, espiritual e material, garantia da posse permanente [da terra], reconhecimento dos modos de vida e do dever do Estado de resguardar os povos indígenas diante de qualquer ameaça. A Lei 14.701 de 2023 rompe com esse sistema”, explicou a advogada indígena Maíra Pankararu, falando em nome da Rede Sustentabilidade.
“Desde a promulgação da Lei 14.701, observa-se um crescimento alarmante de invasões, ameaças e violências. Essa lei tem sido interpretada como autorização tácita para grileiros, posseiros, garimpeiros, mineradores ilegais intensificarem conflitos, acreditando estarem amparados por ela”, alertou. “Essa insegurança jurídica recai sempre em nós, povos indígenas, nunca sobre aqueles que violam nossos territórios”, complementou.
Alguns representantes das organizações da sociedade civil ressaltaram que a aprovação da lei e da PEC baseia-se num “inconformismo” em relação a decisões da Corte de grupos políticos contrários aos direitos indígenas.
“[A aprovação da PEC] não é apenas uma grave afronta aos direitos fundamentais dos povos indígenas, mas também um inequívoco desafio à autoridade desta Suprema Corte e à força normativa da Constituição”, reforçou o advogado da Apib Ricardo Terena.
Ele listou manifestações anteriores de alguns ministros, a exemplo do próprio Gilmar Mendes, que confirmaram o caráter originário (anterior ao Estado) dos direitos territoriais indígenas e, portanto, a inexistência de qualquer marco temporal para atestá-los.
Os representantes das organizações que questionam a lei também criticaram os dispositivos da norma que possibilitam que estados, municípios, posseiros e proprietários, em geral contrários às demarcações, possam participar desde o início do procedimento, inclusive de seus estudos técnicos. Eles lembraram que não é possível contestar uma proposta de limite de território sem que ela tenha sido feita nesses levantamentos, que eles têm caráter eminentemente técnico e que esses atores poderão, inclusive, impedir a sua conclusão.
Importância climática
A advogada do ISA Renata Vieira ressaltou a importância das TIs para o combate às mudanças climáticas.
“Dados do ISA demonstram que as Terras Indígenas constituem a sua principal barreira contra o desmatamento. Elas são 16 vezes mais preservadas que as áreas ao seu redor, o que contribui para o país alcançar as suas metas climáticas “, informou. “Em tempos de ambiciosas metas climáticas, demarcar Terras Indígenas deve ser compreendido como solução, e não como problema”, destacou (veja o vídeo completo).
“Hoje o mundo observa este julgamento porque se sabe que onde há Terras Indígenas demarcadas, há florestas e matas. Onde há florestas e matas, há água. Onde há água, há vida. Onde há vida, há futuro climático possível”, acrescentou Maíra Pankararu.
“Ou o Brasil protege Terras Indígenas ou o Brasil perde sua credibilidade climática. E não há neutralidade possível diante dessa realidade”, arrematou.
Raposa-Serra do Sol
Em contraponto, os representantes do PP, de estados e organizações de grandes proprietários rurais insistiram no discurso de que os laudos antropológicos que baseiam os estudos técnicos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) seriam “subjetivos” e enviesados, enquanto a Lei 14.701 traria “segurança jurídica”.
“A lei, ao estabelecer um parâmetro objetivo, que é o marco temporal, traz previsibilidade, traz calculabilidade, você traz confiabilidade nos atos e nos processos de demarcação de Terra Indígena, o que propicia uma rapidez na sua conclusão e não um eventual questionamento incessante”, defendeu o advogado do PP, Rudy Ferraz.
Eles justificou que a legislação apenas reproduz os principais pontos da decisão do STF de 2009 sobre a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (RR), que previu o marco temporal pela primeira vez, além de outras condicionantes restringindo as demarcações.
Com base nessa decisão, ele e outros defensores da lei defenderam que o caso firmou uma jurisprudência ainda válida e que, portanto, haveria “interpretações divergentes” sobre o assunto na Corte. Por causa disso, o Congresso teria apenas procurado realizar um “diálogo institucional” com o tribunal ao aprovar a legislação.
O argumento omite que a decisão do STF de 2023 teve “repercussão geral”, ou seja, deve obrigatoriamente ser seguida por todos os juízes do país. Da mesma forma, ignora que a decisão sobre a TI Raposa-Serra do Sol valeu apenas para o caso em questão.
“O que foi aplicado no caso Raposa foi o instituto do direito originário, do indigenato, mas nunca o marco temporal. Tudo bem que ele aparece na ementa do caso Raposa, mas ele não foi aplicado”, contrapôs o advogado Rafael Modesto dos Santos.
“As posses, ocupações, títulos de domínio [de não indígenas], inclusive do final do século retrasado, início do século passado, foram anulados. Houve uma ressignificação daquele caso, em prejuízo dos povos indígenas”, ressaltou. Santos representa a comunidade indígena Xokleng da TI Ibirama-La Klãnõ (SC), cujo caso originou a decisão do Supremo de 2023.
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