Mapeamento inédito da Conaq e do ISA revela subnotificação grave e mostra que quilombolas preservam área do tamanho de Alagoas
Um estudo inédito, lançado nesta quinta (30), mostra que a presença quilombola na Amazônia Legal é muito mais ampla do que os registros oficiais indicam, e que esses territórios são fundamentais para a conservação da floresta.
A Nota Técnica “Amazônia Quilombola: Ampliando a Cartografia sobre os Quilombos na Amazônia Legal” identificou 632 territórios quilombolas, número 280% maior que o registrado nos bancos de dados espaciais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pelo reconhecimento oficial dessas áreas na esfera federal. Juntas, essas áreas somam mais de 3,6 milhões de hectares, 88% a mais que os dados espaciais do órgão fundiário e o equivalente à extensão de Alagoas.
O estudo é uma parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e suas coordenações estaduais.
De acordo com a pesquisa, a concentração no número de territórios está nos estados do Maranhão (64%) e Pará (25%). Em extensão, o Pará vem em primeiro lugar, com 1,4 milhão de hectares ou 40% do total; o Amazonas fica em segundo lugar, com 753,4 mil hectares ou 20% do total; e o Tocantins, em terceiro lugar, com 607,9 mil hectares, 17% do total.
O levantamento indicou ainda 2.494 “quilombos” ou comunidades quilombolas, incluindo 287 que não apareciam em nenhuma base pública. Segundo a metodologia usada, os quilombos são indicados no mapeamento com um ponto de localização, compreendendo diferentes tipos de ocupação, desde áreas de habitação, com um número variável de famílias, até aquelas de uso temporário para agricultura, extrativismo, caça etc. Já o território quilombola abrange um ou mais quilombos, tem um perímetro definido por algum procedimento oficial ou mapeamento autônomo dos quilombolas e são representados cartograficamente por um polígono.
O trabalho consolidou, pela primeira vez, os dados de diversas fontes oficiais e comunitárias em um único mapa, com validação participativa de 112 representantes quilombolas em oficinas e reuniões realizadas ao longo de dois meses nos estados da Amazônia Legal (exceto Acre e Roraima).
A dispersão de dados e a multiplicidade de metodologias de mapeamento em vários órgãos públicos, como o Incra, o IBGE, a Fundação Cultural Palmares (FCP) e institutos de terras estaduais, vem dificultando por décadas a produção de números precisos sobre essas áreas em todo país. A iniciativa promete apoiar a solução para o problema.
A partir da base de dados levantada, foi desenvolvido um painel com um mapa interativo que será apresentado no dia 18/11, às 16h, na Zona Azul da COP 30, em Belém A ideia é ampliar a visibilidade e o acesso público às informações sobre os quilombos e fortalecer sua presença na agenda climática.
Vulnerabilidade social e ambiental
Apesar da expressiva presença territorial, quase metade (47%) dos quilombos mapeados não têm sequer a delimitação, e apenas 160 territórios estão titulados integralmente. A falta de regularização, mantém milhares de quilombolas em situação de vulnerabilidade social e ambiental. Mais de 49% das comunidades sequer passaram da primeira etapa do processo: a certificação pela FCP.
“A invisibilidade nos dados oficiais é uma das expressões mais graves do racismo ambiental. Quando o Estado não reconhece esses territórios, nega às comunidades o direito à terra e desconsidera o papel que elas cumprem na proteção da floresta”, afirma Antonio Oviedo, pesquisador do ISA e um dos autores do estudo.
“Por outro lado, este levantamento mostra a importância da autodeclaração, que ocorre quando essas comunidades decidem como é a ocupação do território, inclusive informando seus limites. Isso ocorre quando a comunidade quilombola entra no sistema do CAR ou na Plataforma Territórios Tradicionais, do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e informa ao Estado algum aspecto do seu território”, comenta. “O que o levantamento mostra é que o Brasil ainda não enxerga toda a extensão da contribuição quilombola para o equilíbrio climático e a conservação da Amazônia.”
Florestas quilombolas
Os territórios quilombolas mapeados preservam 92% de florestas e outras formações de vegetação nativa. Em estados como o Amazonas, a taxa de cobertura florestal chega a 99%. Desde 1985 até 2022, esses territórios perderam apenas 4,7% de sua cobertura florestal original, uma redução mínima quando comparada a das áreas privadas (17%).
“Os dados demonstram que os territórios quilombolas funcionam como barreiras contra o avanço do desmatamento e das queimadas. Observa-se que o reconhecimento territorial e segurança fundiária estão diretamente associados à manutenção das florestas”, destaca Oviedo. “Fortalecer a proteção e titular esses territórios é uma das formas mais eficazes de combater a crise climática”, defende.
Os resultados evidenciam que, à medida que o reconhecimento territorial dos quilombos avança, aumenta o nível de proteção das florestas.Territórios titulados preservam 91% de sua cobertura original, enquanto nos não titulados esse índice cai para 76%. A diferença nas taxas de desmatamento é expressiva: as áreas tituladas perderam 60% menos floresta do que as não tituladas.
Um dos resultados mais preocupantes do levantamento diz respeito aos territórios quilombolas autodeclarados ainda sem certificação. Nessas áreas, a taxa de proteção da cobertura florestal é 45% menor do que nos territórios titulados e 34% inferior em relação aos que, embora não titulados, já contam com algum reconhecimento oficial, refletindo diretamente na taxa de perda florestal.
O estudo também aponta um aumento de 1.248% da área ocupada por atividades agropecuárias, que implicam desmatamento, dentro dos territórios sem certificação, um indício de crescente pressão de invasores. “Os dados reforçam a urgência da titulação e do reconhecimento oficial dessas comunidades, além da necessidade de investigar ocupações irregulares que comprometem seus direitos e a integridade ambiental das áreas”, alerta Francisco das Chagas Souza, assessor técnico da Conaq e outro autor do estudo.
Políticas Públicas
Além de revelar a magnitude da presença quilombola na Amazônia, a base de dados construída pelo estudo oferece um instrumento estratégico para o aprimoramento das políticas públicas de reconhecimento e planejamento territorial. O levantamento poderá, por exemplo, apoiar a atualização do Cadastro de Setores Censitários Especiais de Quilombo, do IBGE, e a ampliação da cobertura do Censo Agropecuário sobre áreas quilombolas.
“O reconhecimento desses territórios é mais do que uma demanda de reparação histórica, é uma estratégia de futuro para a Amazônia. Garantir os direitos quilombolas é também garantir a resiliência climática e a soberania alimentar da região”, conclui Oviedo.
Metodologia
Em uma metodologia inédita, o estudo combinou fontes de dados governamentais, como o Incra, a FCP e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), e mapeamentos autônomos dos quilombolas. A pesquisa envolveu lideranças de vários estados, com oficinas presenciais em cidades como Cuiabá, Macapá e São Luís, além de reuniões virtuais com representantes quilombolas dos estados do Pará, Rondônia, Amazonas e Tocantins.
A validação participativa foi ponto central: 112 representantes quilombolas revisaram, confirmaram e corrigiram informações sobre a localização e o reconhecimento das áreas, analisando inclusive dados do IBGE e incorporando 287 quilombos não mapeados oficialmente. Ao final, 81% das comunidades levantadas foram validadas, produzindo um mapa estratégico, essencial para políticas públicas de reconhecimento territorial e planejamento ambiental.
“Esse mapeamento é um instrumento construído com e pelas próprias comunidades quilombolas. Ele comprova não só que existimos, mas que somos responsáveis por proteger as florestas e a biodiversidade nesses territórios”, afirma Daniele Bendelac, da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu).
Segundo ela, cada ponto e polígono do mapa reflete o conhecimento acumulado pelas pessoas que vivem e cuidam desses lugares, e demonstra que as comunidades são também guardiãs do meio ambiente. “Essas informações mostram a força dos nossos processos de autodeclaração e resistência. Mesmo diante das tentativas de invisibilização, mostramos que nossos territórios estão vivos e que seguimos contribuindo para a preservação da Amazônia e para o enfrentamento da crise climática.”.
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