Implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar enfrenta grandes desafios logísticos e estruturais diante da extensão territorial, conectividade e acesso à informação
Cerca de 60 professores da rede municipal de São Gabriel da Cachoeira (AM), além de nutricionistas e gestores, participaram entre os dias 16 e 19 de setembro da Oficina de Multiplicadores do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e demais políticas públicas alimentares no Território Rio Negro. Realizada no Telecentro do Instituto Socioambiental (ISA), a atividade teve como objetivo formar os professores como facilitadores na elaboração de projetos para o PNAE em escolas indígenas de comunidades onde o programa ainda não atingiu.
O PNAE é uma das principais políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional de estudantes da rede pública. No Rio Negro, sua implementação enfrenta grandes desafios logísticos e estruturais diante da extensão territorial, conectividade e acesso a informação.
Somente em São Gabriel da Cachoeira, há 259 escolas da rede pública municipal, das quais 251 estão em comunidades indígenas, onde a gestão cotidiana é feita pelos próprios professores. Neste universo, o programa chegou a 53 comunidades em 2024 e, em 2025, ampliou seu alcance para 66, o que torna a oficina ainda mais relevante para fortalecer e ampliar a política na região, valorizando a cultura alimentar dos povos e gerando renda para as famílias.

“Por isso não convidamos os agricultores, e sim os professores. Porque é o professor quem recebe a merenda, que registra no relatório a entrega dos agricultores”, explica Andreia Damasceno, assessora técnica do ISA responsável pela atividade. Segundo ela, os convidados vieram justamente de comunidades distantes, nas calhas dos rios, onde a equipe de assessoria dificilmente chega com frequência, em uma estratégia para ampliar o acesso ao programa.
Considerando esse contexto, a programação combinou momentos de exposição e prática, onde os professores e gestores puderam, com apoio dos facilitadores, compreender as normativas, ler e preencher coletivamente as etapas do processo de venda ao PNAE, além de mapear os alimentos disponíveis em cada comunidade ao longo do ano.
O nutricionista Ricardo Colares, do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar (Cecane), ligado à Universidade Federal do Amazonas (Ufam), foi um dos parceiros e facilitadores da oficina. Ele explica que a efetivação do programa em territórios remotos, como o Rio Negro, representa um passo essencial no resgate da cultura alimentar indígena.
“Por muitos anos, as escolas receberam alimentos industrializados, que descaracterizaram os hábitos alimentares locais. Hoje, o PNAE permite valorizar e reintroduzir alimentos tradicionais, como galinha caipira, peixe, goma, farinha, beiju e pé de moleque, substituindo enlatados por uma alimentação mais saudável”, ressalta.

No decorrer da programação, Ricardo explicou quais alimentos são permitidos no PNAE, conforme a Nota Técnica nº 03/2020 – 6ª CCR, esclareceu as diferenças entre Chamada Pública dos PCTs e Chamada Pública Geral do PNAE e apoiou o mapeamento da produção agrícola para fornecimento ao programa. Sua contribuição trouxe elementos técnicos que ajudaram a aproximar a política da realidade das comunidades locais.
“Depois de várias reuniões no Ministério Público Federal, com órgãos da Vigilância Sanitária, do MAPA [Ministério da Agricultura e Pecuária], da [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] Funai e outros parceiros, foi elaborada a nota técnica que facilitou o acesso do agricultor. A partir dela, não é mais necessário que um alimento passe por inspeção e protocolo sanitário, pois se reconhece que os povos indígenas produzem e consomem seus alimentos de acordo com métodos tradicionais praticados há milhares de anos”, afirma.
Segundo Andréia, a dinâmica permitiu aproximar o planejamento da realidade da produção local e das especificidades culturais da alimentação indígena, uma vez que envolveu a participação de órgãos e técnicos responsáveis pela elaboração dos editais de chamamento no município, reforçando o diálogo entre as partes envolvidas e garantindo que os processos possam ser mais adequados à disponibilidade de alimentos em cada região.
Nesta perspectiva, a nutricionista Alexandra Maria Melgueiro Delia, responsável técnica pela alimentação escolar indígena em São Gabriel da Cachoeira, avalia que a oficina representa um avanço fundamental na execução da política.
“O município é de grande extensão territorial, com comunidades de difícil acesso, onde muitas vezes não conseguimos chegar. Trazer os professores para cá e capacitá-los para elaborarem os projetos junto com os agricultores é de grande relevância. A alimentação escolar só tende a ganhar, porque gera renda no município, valoriza a cultura e garante uma oferta de comida adequada, saudável e nutritiva para as nossas crianças”, destaca.
Professor em Vista Alegre, no médio Rio Içana, João Cláudio conta que, após a formação, vai poder orientar as famílias da sua região, que muitas vezes não conseguem acessar o programa devido à burocracia e à distância da cidade para organizar a documentação necessária.
O PNAE, relata o professor, ainda não chegou à escola da comunidade e os próprios pais, para complementar a merenda escolar, costumam fazer o “ajuri”, ou seja, se juntam para entregar frutos e outros produtos das roças e quintais de forma voluntária e gratuita. Para ele, a capacitação representa a possibilidade de planejar melhor a produção local, fortalecer a participação das famílias e fazer com que os alunos possam consumir alimentos regionais no lugar dos industrializados.
“Eu fiquei satisfeito, porque já vou poder ajudar os familiares lá, os pais dos alunos principalmente, para entender qual é a necessidade para nossas regiões, orientar e eles também poderem receber por isso”, avalia o professor.

O professor João Vicente Vilela, do povo Yanomami, é o responsável pela gestão da Escola Municipal Indígena Horoinã, na comunidade de Maturacá, na Terra Indígena Yanomami no Amazonas, e conta que o programa era conhecido pelo nome, mas sem detalhamento de como realmente funcionava.
A partir da oficina, ele conta que pôde compreender as normativas e o direcionamento do programa, o que lhe permitirá levar informações concretas para sua comunidade e incentivar os agricultores a apoiarem as escolas.
“O PNAE é importante para a gente, porque ele faz um complemento, ele valoriza as merendas regionais voltada para a nossa realidade, para não só se focar na merenda industrial”, completa.
A oficina é uma ação que integra o projeto de processos de estruturação, governança, conexão com o mercado e incidência política para a promoção das cadeias de valor de turismo de base comunitária e de produtos da sociobiodiversidade de comunidades indígenas no Rio Negro, realizado pelo ISA com apoio financeiro do BNDES e Fundo Amazônia.
A atividade contou com a parceria da Secretaria Municipal de Educação e Educação Escolar Indígena (Semedi) e do Cecane/Ufam, além do apoio da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam), Secretaria Municipal do Interior, Produção e Abastecimento (Seminpa), Funai e ICMBio.