Nas roças, universidades e gramados de futebol, mulheres quilombolas vêm ocupando campos tradicionalmente masculinos e honrando o legado da liderança negra
O dia 25 de julho é reconhecido internacionalmente desde 1992 como Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, mas em 2014, a data passou a celebrar também a mulher negra brasileira e, principalmente, a liderança feminina quilombola Tereza de Benguela. Um marco na luta feminina quilombola, Tereza deixou um legado que se estende até hoje.
Estejam elas nos quilombos ou nas favelas, mulheres negras são a continuidade de Tereza e de tantas outras lideranças femininas. Aos poucos, elas vêm ocupando diversos campos, como o de plantio, do futebol e da educação, mostrando que mulher quilombola pode estar onde ela quiser e, assim como as suas ancestrais, pode desempenhar papéis masculinizados.
Atualmente, as mulheres negras são maioria nas universidades. De acordo com levantamento de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), elas representam 27% dos estudantes, seguidas por mulheres brancas (25%), homens brancos (25%) e homens negros (23%). Em 2001, elas formavam 19% do total, superadas por mulheres (38%) e homens brancos (30%) e à frente somente dos homens negros (13%).
Novas gerações quilombolas
Letícia Ester França, de 24 anos, é um dos rostos que ilustra essa mudança. Nascida no Quilombo São Pedro, ela alterna sua vida entre a comunidade e a vida universitária em Matinhos, onde faz licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Para ela, estar no espaço acadêmico é promover uma troca e mostrar às outras pessoas a relação que quilombolas têm com a terra.
“A minha faculdade é interligada com as relações do modo de vida em comunidade quilombola. Toda metodologia estudada está voltada para o campo: as relações das políticas públicas, os saberes tradicionais de cada comunidade, e modo de vida em território coletivo. Além do aprendizado, isso faz com que busquemos saber mais dos nossos direitos”, contou.
Ela alterna o tempo entre a graduação, o trabalho com digitalização de arquivos sobre a questão quilombola na Equipe de Assessoria e Articulação das Comunidades Negras (Eaacone) e o futebol. No entanto, a agricultura familiar está sempre presente. Seus pais, Judith Dias e Amarildo de França, sobrevivem do plantio no quilombo e, desde cedo, a jovem foi ensinada a cultivar. “Uma das coisas que minha mãe sempre me falou foi: ‘vá para a roça aprender a, pelo menos, plantar uma rama de mandioca, um feijão ou seja lá o que for, porque se um dia você quiser morar fora e não der certo, quando voltar para casa, não passará fome’", lembra a estudante.
“Se o campo não planta, a cidade não janta”
Atualmente, a agricultura familiar é a principal responsável pela produção de alimentos disponíveis para consumo da população brasileira, como aponta o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Ela é constituída por pequenos produtores, indígenas, povos e comunidades tradicionais, como quilombolas, além de extrativistas, caiçaras e assentados.
Reconhecidos pela lei 11.326/2006, agricultores familiares são aqueles que realizam atividades na zona rural, utilizando mão-de-obra da própria família para cuidar da área plantada e tendo a agricultura como principal fonte de renda.
Mesmo colocados no mesmo grupo de agricultores familiares, quilombolas têm uma forma diferenciada de plantio. No Vale do Ribeira, a roça tradicional é feita por meio de corte e queima da mata onde vai ser o plantio e após a colheita, se realiza um rodízio para que a área volte a ser produtiva e a vegetação anterior cresça novamente.
Nesse tipo de roça, há o cultivo de diversas espécies em uma mesma área e a vegetação local é mantida para que a copa das árvores possa fazer a cobertura parcial do solo, não havendo a incidência direta do sol no roçado.
A técnica de agrofloresta, que vem ganhando destaque na atualidade, já era realizada pelos quilombolas do Vale do Ribeira há séculos. “Essa é a forma que os nossos mais velhos trabalhavam e a gente quando criança não entendia. É plantado tudo na mesma área porque é a forma de aproveitar o máximo possível do nutriente de solo”, explicou a agricultora Joelma Ursolino Mota Dias, do Quilombo São Pedro, que realiza em sua roça o manejo agroflorestal sustentável.
O modo de fazer roça das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira faz parte do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ), e é reconhecido desde 2018 como patrimônio cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Reconhecer essa técnica é incentivar que a agricultura familiar quilombola permaneça viva e seja repassada para novas gerações.
Elizabete de França Dias, de 22 anos, do Quilombo São Pedro, é técnica de enfermagem, mas o seu primeiro trabalho foi na roça da família, ainda criança. “Minha mãe conta que, quando eu era neném, ela me levava para a roça e eu ficava deitada em uma rede, com meus irmãos mais velhos me olhando. Cresci observando e ajudando na roça”, lembrou.
Na infância, as crianças tinham uma horta coletiva e aprendiam brincando como plantar de forma tradicional quilombola. Hoje, ela tem uma horta em parceria com sua mãe, Valni de França.
Joelma, Elizabete e Valni fazem parte da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), que há 10 anos produz e comercializa alimentos sem agrotóxicos e cultivados de forma tradicional.
Dos 241 cooperados, 101 são mulheres, que trabalham com uma grande diversidade de alimentos, como banana, chuchu, couve e mandioca.
Durante a pandemia, quilombolas da Cooperquivale, junto a organizações parceiras, se organizaram para distribuir os alimentos produzidos em suas roças para pessoas em situação de insegurança alimentar em 11 municípios do estado de São Paulo, entre elas, favelas da cidade de São Paulo. De maio de 2020 a fevereiro de 2022, a Cooperquivale realizou 22 entregas, num total de 332 toneladas de alimentos distribuídos. Embora os homens estejam em maior número dentro da cooperativa, foram elas as principais responsáveis pelas entregas de alimentos e representaram a maioria da força de trabalho dentro dessas 22 distribuições, formando 54,8% do grupo.
Mesmo que a agricultura familiar tenha papel relevante na alimentação da população do país, trabalhar na roça ainda é alvo de preconceito. “Já ouvi algumas vezes, até mesmo nas escolas daqui, coisas do tipo ‘Você quer ficar igual aos teus pais? Carpindo a vida inteira?’ ou ‘o que é mais leve? Uma caneta ou o cabo de uma enxada?’, como se trabalhar na agricultura fosse algo menor”, afirmou Elizabete.
Da roça para os campos de futebol
Quando se pensa em atletas de referência do futebol feminino brasileiro, nomes como o de Marta, Formiga, Pretinha são mencionados. Entretanto, nos cargos de poder da comissão técnica, elas não têm a mesma chance de brilhar como nos gramados.
Atualmente ainda há um outro fenômeno que é o embranquecimento do futebol em si, com os negros perdendo espaço e protagonismo nos gramados. Gradativamente, o perfil dos jogadores tem mudado. Se antes eram de jovens negros de classes sociais mais baixas, hoje é possível ver a substituição desses por muitos jovens de classe média.
A filósofa Sueli Carneiro apontou o fenômeno recentemente em conversa com o rapper Mano Brown no podcast “Mano a Mano”, onde destacou que “eles não deixaram de querer futebol; eles têm sido gradativamente excluídos”. Segundo profissionais do futebol, esse movimento se dá tanto em relação à elitização do esporte e estádios, mas também uma mudança na seleção de jovens jogadores. No passado, muitos jogadores eram descobertos nas várzeas por olheiros e hoje os clubes têm buscado atletas em escolas particulares, favorecendo atletas de classe média.
Nos quilombos do Vale do Ribeira, elas subvertem essa ordem, formando times com maioria ou completamente negros. Joelma, Elizabete, Letícia e Judith fazem parte do Esporte Clube São Pedro, time composto exclusivamente por mulheres quilombolas que já soma 10 títulos nos torneios que disputam na cidade de Eldorado (SP), onde está localizado o quilombo.
Outro aspecto diferencial do time é que não há uma idade limite para fazer parte do time, basta querer jogar futebol. “Tem mulheres de todas as idades. De 13, 14 anos, as mais velhas… A gente abrange todas as mulheres que querem jogar. A gente espera poder evoluir com o futebol feminino”, disse Letícia, que hoje é a capitã do time.
Seja nos campos de futebol, na roça ou na universidade, as mulheres quilombolas querem ocupar os espaços de poder e serem vistas como seres potentes. “O objetivo é aprimorar e desejar ocupar aquele espaço que é para qualquer mulher, e mulher negra quilombola, principalmente. Temos que mostrar que somos capazes de mudar como a sociedade nos vê, que não somos capazes de nada e pelo contrário, somos capazes de muitas coisas”, finalizou Letícia.
Quem foi Tereza de Benguela?
Casada com José Piolho, líder do Quilombo Piolho, ou Quilombo do Quariterê, no Mato Grosso, Tereza de Benguela assumiu a liderança do quilombo assim que o seu companheiro morreu, por volta de 1750.
Durante os 20 anos seguintes, Rainha Tereza, como era chamada, chegou a abrigar cerca de 100 pessoas no território, entre negros, indígenas e mestiços. Por meio de um regime parlamentar, comandou a estrutura política, econômica e administrativa do quilombo. Ali era cultivado milho, feijão, mandioca, entre outros, e algodão, que mais adiante era utilizado para a produção de tecido.
Ela morreu após ter sido capturada por soldados, mas não se sabe ao certo se suicidou-se ou se foi executada.