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A saga da vida de Karapiru

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Vítima da Covid-19, o Awa Guajá sobreviveu a um massacre nos anos 1970 e, 10 anos depois, teve um rencontro memorável com o filho
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Alterado em 26/07/2021 às 16h39



Karapiru e um dos filhos, indígenas da etnia Awa Guajá, foram os únicos sobreviventes de uma emboscada de fazendeiros nos anos 1970. No ataque, foram assassinados a mãe, esposa, filhos e irmãos. Karapiru fugiu, levando cravada nas costas uma bala.

Durante dez anos, ele acreditou ser o único sobrevivente da sua família e se refugiou nas matas entre 1978 e 1988, percorrendo várias regiões, flechando porcos, dormindo no alto das árvores, visitando esporadicamente fazendas e conversando consigo mesmo. Até que decidiu entrar em contato com moradores de uma pequena cidade no noroeste da Bahia, a mil quilômetros do ponto de partida.

Ali, aconteceu um surpreendente reencontro: um dos intérpretes levados pela Funai para mediar o contato com Karapiru viu as marcas em suas costas e confirmou que o indígena desconhecido era na verdade seu pai.

Levado novamente ao convívio dos Awa, e em companhia do filho, Karapiru foi recebido com festa, passando a viver em uma das comunidades com atuais familiares. Foi ao longo desta etapa da vida um guerreiro presente na luta pela defesa dos territórios indígenas e pela proteção dos grupos Awa isolados. Sua história foi eternizada no filme “Serras da Desordem”, de Andrea Tonacci, lançado em 2006.

Em depoimento ao Instituto Socioambiental (ISA) em 2013, Karapiru descreveu o episódio que o marcaria para sempre. “Os karai [não indígenas] mataram a minha esposa e meu filho. Eles atiraram neles na mata. Atiraram com arma de fogo feita de ferro. Eu era o pai. Quem morreu foi um antigo filho meu. Os karai o mataram com arma de fogo. Nós corremos e eles foram atrás de nós e os mataram. Os karai matam até crianças Awa! Mataram meu filho! Eu andei muito pela mata. Às vezes era muito calor e sentia sede. De longe eu ficava observando os karai. Via suas plantações de mandioca e milho. E pensava que um dia ia matá-los. Andava muito pela floresta: a floresta é grande! Muitas vezes eu estava tão perto dos karai que escutava o galo cantar. Por vezes eu passava fome".






Os Awa Guajá, estimados em 520 pessoas falantes de uma língua tupi-guarani, são um povo que sempre privilegiou o convívio em pequenos grupos distribuídos por territórios abrangentes, nas imediações dos rios Pindaré e Gurupi, na porção oriental da Amazônia, e habitam diversas aldeias compreendidas atualmente na TI Awa, TI Alto Turiaçu, TI Caru e TI Araribóia, onde compartilham territórios com famílias dos povos Ka’apor, Tembé e Tenetehara (Guajajara), alguns dos quais com presença de grupos isolados, no Maranhão.

Tanto os Awa quanto os Avá-Canoeiro são povos sobreviventes de sucessivos massacres por fazendeiros e colonos nos estados do Maranhão, Goiás e Tocantins. Pela dispersão e fuga, há diversos grupos isolados pelos estados de Goiás, Bahia e Minas Gerais.

Para os Awa, a “vida na floresta” é fundamental, e os conhecimentos dela, de seus animais e plantas, correspondem a diversas atividades de subsistência, como a caça, coleta e cultivos, e também cerimoniais, como rituais xamânicos e de cura, entre outras práticas culturais. Os Awa também servem de guardiões da parte de floresta amazônica no Maranhão.

Invasões

Os territórios dos Awa formam um corredor verde junto com a Reserva Biológica (Rebio) do Gurupi. Hoje, eles são fortemente impactados por invasões de madeireiros, que já causaram desmatamento e degradação de cerca de 90% da floresta remanescente. Historicamente, a área é marcada pelos efeitos de fluxos migratórios e o estabelecimento de atividades minerária e agropecuária, além da exploração madeireira, e por obras de infraestrutura realizadas no contexto da ocupação econômica da Amazônia pela ditadura, como a rodovia BR-222 e a Estrada de Ferro Carajás.

Sobreviventes de ataques e massacres por invasores desde pelo menos o século XIX, e testemunhas do assassinato de suas famílias nos conflitos contemporâneos em torno das Terras Indígenas, Karapiru e os Awa viveram para ver aquela região do estado maranhense seguir sendo palco de violência até o século XXI, contando agora com um dos maiores números de assassinatos de lideranças indígenas no país apenas no último período, como é a situação alarmante da TI Araribóia, do povo Guajajara, e que recentemente derivou em uma escalada de mortes violentas.

Durante a pandemia, apesar de todos os cuidados tomados pelos Awa, que se isolaram, montaram barreiras sanitárias e se vacinaram, a Covid-19 entrou no território e alcançou a comunidade indígena. Já em estado grave, em julho de 2021, Karapiru foi levado à cidade de Santa Inês (MA) para atendimento hospitalar, onde, como dizem os Awa, foi para o iwa (“céu”).

Rafael Pacheco
ISA
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