Brasil Socioambiental: desenvolvimento, sim. De qualquer jeito, não.
Um dos motes do ISA em sua fundação
A política é o meio de exercer a cidadania para garantir direitos. Nesse campo, o ISA visa contribuir para o Brasil ser um país mais justo e sustentável, a partir de marcos legais, institucionais e de políticas públicas que reflitam os desafios colocados à sociedade brasileira, incluindo povos indígenas e comunidades tradicionais, cujo papel para a manutenção de nosso patrimônio socioambiental é fundamental. Com o trabalho em Política e Direito, trazemos para o debate público e à formulação de normas e políticas as experiências desenvolvidas por e com nossos parceiros, bem como o conhecimento acumulado pelo próprio ISA nos temas socioambientais.
Atuar com o tema Política e Direito é um dos pilares do trabalho do ISA desde sua criação. O Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), organização que precedeu e integrou a fundação do ISA, foi uma referência na sociedade civil brasileira nos anos 80 e 90, atuando junto aos poderes da República para a implementação dos direitos constitucionais indígenas, conquistados na Constituição de 1988. O trabalho do Programa Povos Indígenas do Centro Ecumêmico de Documento e Informação (Cedi), outra instituição que participou da criação do ISA, também sempre esteve voltado para a garantia dos direitos dos Povos Indígenas.
Desde sua fundação, em 1994, o ISA ampliou essa atuação para outros temas socioambientais, tendo participado ativamente de debates sobre a formulação de leis e políticas fundamentais ao desenvolvimento sustentável do País. Esse trabalho requer constante articulação interinstitucional no âmbito da sociedade civil, dos movimentos sociais e com outros setores, o que fazemos por meio da participação de nossos advogados, pesquisadores e ativistas em coletivos, fóruns e redes.
A missão da equipe do ISA que atua diretamente com o tema Política e Direito valoriza as iniciativas políticas e legislativas de caráter propositivo, qualificando o debate público e apresentando soluções aos desafios em pauta, mas sem abrir mão dos recursos de obstrução e das estratégias de denúncia e de resistência política contra qualquer ameaça de retrocesso.
A equipe do ISA reúne perfis multidisciplinares e opera em articulação direta com os demais times da organização, sempre antenada com as demandas e propostas da sociedade civil para a agenda socioambiental e atenta à atuação dos atores políticos e tomadores de decisão. Além disso, atuamos inspirados pelo movimento social que mobiliza milhares de corações e mentes pelo Brasil para transformar o País em um lugar mais justo e sustentável.
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Militares precisam incorporar emergência climática à sua visão estratégica
O Brasil precisa da capacidade humana e operacional e da capilaridade estrutural das Forças Armadas para proteger o povo, o território e a economia dos impactos das mudanças climáticas
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Enchente em Manaus (AM), em 2016 |Alberto César Araújo/Amazônia Real
A tentativa frustrada de golpe da extrema direita esquentou o debate sobre o papel das Forças Armadas (FAs) no regime democrático. Quem se opõe ao golpe entende que elas foram lenientes ao tolerar acampamentos golpistas em frente aos quartéis por meses, enquanto os golpistas dizem que elas foram covardes ao não impedirem, à força, a posse de Lula.
O alto grau de politização e de ideologização entre policiais e militares promovido pelo governo passado deixou sequelas. O suposto envolvimento de ex-ministros militares na estratégia golpista, como Braga Neto e Augusto Heleno, multiplica dúvidas sobre a isenção política e o compromisso democrático das FAs. Milhares de militares que foram cooptados para cargos civis foram exonerados e, os que estão na ativa, voltam, ressentidos, para as suas funções de origem.
Quarta-feira da semana passada (18), o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, então comandante militar do Sudeste, fez um enfático discurso em defesa da isenção política e do profissionalismo nas FAs, durante uma cerimônia no Quartel-General Integrado, em São Paulo. Na sexta-feira, o presidente reuniu-se com os comandantes militares para definir uma agenda positiva na política de defesa, em um clima de “página virada”.
Quebra de confiança
No sábado, porém, para surpresa geral, Lula exonerou o comandante do Exército, general Julio Cesar de Arruda, que esteve na reunião da véspera, quando não foi discutida a tentativa de golpe. Foi acordado que as investigações pertinentes seguiriam a cargo da Polícia Federal, subordinada ao STF, e que os eventuais culpados seriam punidos, sejam civis ou militares.
A divergência de Arruda com Lula começou por causa da nomeação, pelo primeiro, do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, para comandar um batalhão de elite do Exército, em Goiânia, a 200 km da capital. Cid foi um dos assessores mais próximos do ex-presidente, participou da difusão de fake news e de ofensas contra Lula, o que levou à sua inclusão entre os investigados pelo STF e à descoberta de que operava, dentro do Palácio do Planalto, uma imensa rachadinha alimentada por cartões corporativos. A informação é de que Arruda teria resistido à exonerar o militar bolsonarista.
A gota d’água, provavelmente, foi a divulgação pela imprensa de mais detalhes das conversas realizadas, na noite do dia 8 de janeiro, em Brasília, entre Arruda, outros militares, ministros do governo Lula, o recém-nomeado interventor da Segurança Pública do DF, Ricardo Cappeli, e o então comandante da Polícia Militar do DF, Fábio Augusto Vieira.
Os ministros da Defesa, da Justiça e do Gabinete da Casa Civil, além de Capelli e Vieira, reuniram-se com Arruda para viabilizar a retirada do acampamento golpista instalado, há meses, em frente ao Quartel-General do Exército e para prender seus participantes, após a depredação das sedes dos Três Poderes. Arruda não só não concordou com a ação como chegou a ameaçar impedi-la com o uso de suas tropas. O clima esquentou, com bate-boca entre Arruda e o ministro da Justiça, Flávio Dino. Depois que os ânimos se acalmaram, o combinado foi que o acampamento seria desmontado e as prisões ocorreriam na manhã seguinte. Depois disso tudo, Lula exigiu exoneração de Arruda e o substituiu por Ribeiro Paiva.
A profissionalização das FAs requer a formação e a valorização dos seus quadros, sem qualquer discriminação de gênero, de raça, de religião ou de opinião política. Mas ela não pode ser alcançada protegendo ou promovendo quem atua contra a democracia.
Formação com ciência
Nas tratativas preparatórias para a reunião entre Lula e os comandantes militares, membros das forças sinalizaram aos interlocutores do governo que, em nome de uma convivência positiva nos próximos anos, esperavam ver respeitados seus usos, costumes e tradições. Entre eles, teria sido mencionada a necessidade de não interferência do governo nos currículos das escolas militares. Nada consta sobre o assunto no programa de governo de Lula.
Para além da discussão específica sobre os currículos, experiências dolorosas dos anos recentes mostram um quadro grave de ignorância e de negação à ciência, do comando à tropa. Foi o caso do combate à pandemia do novo coronavírus, em que o Ministério da Defesa mergulhou na distribuição de cloroquina, inclusive entre indígenas, quando já havia evidências científicas da sua ineficácia para esse fim.
Outro exemplo gritante é o do negacionismo climático. O pensamento dominante nas FAs continua tratando a ameaça das mudanças climáticas como se fossem uma fake ambientalista, quando já não existem dúvidas científicas sobre o aquecimento global, tendo como causa principal a excessiva emissão de metano, dióxido de carbono e outros gases na atmosfera. A ignorância deliberada sobre o tema torna ridículos estudos “estratégicos” recentes, como o “Projeto de Nação: Brasil 2035”, formulado por três importantes ONGs militares.
Emergência climática
Não estou falando de saber especulativo e nem de estudos pontuais, mas de acúmulo científico ao longo do tempo. Não é preciso que o governo civil imponha conteúdos semelhantes aos currículos militares. Os próprios dirigentes militares devem fazê-lo, da forma mais apropriada aos seus usos e costumes. Nesses casos, a negação da verdade não é questão de opção ideológica, mas cobra o seu preço em vidas, muitas vidas, inclusive de militares e familiares.
Também não se trata de projeções científicas, mas de realidades factuais acachapantes. O aumento da temperatura potencializa a violência das tempestades, com maior volume de água em menor tempo. E também favorece o alongamento das estiagens, com impactos crescentes sobre a agricultura, o abastecimento das cidades e a geração de energia. O aumento do nível do oceano já afeta ilhas e regiões costeiras com ressacas violentas e erosão.
A crise climática já afeta a economia de todos os países, embora as vulnerabilidades sejam diferenciadas; intensifica fluxos migratórios internos e externos; contribui para o aumento da sede, da fome, da disseminação de doenças e da violência. O Brasil precisa da capacidade humana e operacional e da capilaridade estrutural das FAs para proteger o povo, o território e a economia dos impactos das mudanças climáticas.
Diversos países dispõem de instituições militares públicas e privadas dedicadas às implicações estratégicas das mudanças climáticas, assim como há foros de debates internacionais. Segundo seus usos, costumes e tradições, as FAs precisam recuperar o tempo perdido e incorporar, de forma orgânica, a emergência do clima à sua visão estratégica, antes que seja tarde demais.
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"É o socorro que pedimos”, diz Davi Kopenawa sobre medidas de Lula na saúde yanomami
Liderança indígena também reforçou ao presidente a necessidade de retirar o garimpo ilegal da Terra Indígena Yanomami
Davi Kopenawa fala em Boa Vista durante visita de Lula ao estado|Ricardo Stuckert
O xamã e liderança yanomami Davi Kopenawa afirmou no sábado (21/01) que as medidas tomadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foram “o socorro” que os Yanomami pediam.
Lula viajou ao estado de Roraima para visitar pacientes Yanomami internados na Casa de Saúde Indígena Yanomami (Casai-Y) e anunciar medidas para reverter a crise sanitária e humanitária que os indígenas enfrentam.
“Foi o socorro que nós pedimos e que ele nos prometeu. Ele já havia me falado que me ajudaria a salvar meu povo", disse o presidente da Hutukara Associação Yanomami ao ISA.
"Em primeiro lugar, ele vai precisar tirar os invasores, o garimpo ilegal, Se não tirar, a doença continua, assim como a destruição e a poluição”, afirmou Davi. Lula, no entanto, ainda não falou quando deve iniciar a desintrusão.
Horas antes da viagem, ainda na noite de sexta-feira (20/01), o presidente criou o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami e uma portaria do Ministério da Saúde declarou estado de emergência na Saúde Yanomami.
“Se alguém me contasse que em Roraima tinha pessoas sendo tratadas dessa forma desumana, como vi o povo Yanomami aqui, eu não acreditaria. O que vi me abalou”, disse, após visitar as instalações e conversar com indígenas.
O presidente afirmou que ouviu relatos de indígenas que estavam esperando há meses para retornar à Terra Indígena Yanomami e reclamações sobre a alimentação. Sensibilizado com a situação, ele afirmou que os Yanomami passarão a ser tratados como “seres humanos” pelo governo.
Davi Kopenawa, xamã e liderança reconhecida no mundo todo pelo seu pensamento e pela luta na proteção da Amazônia e pelos direitos dos povos na TI Yanomami, recebe @LulaOficial no aeroporto de Boa Vista (RR). pic.twitter.com/v3i8TBtPO0
Ainda no trajeto a Boa Vista, Lula recebeu no avião um exemplar da publicação "Yanomami Sob Ataque", da Hutukara. Feito com apoio do Instituto Socioambiental (ISA) e publicado em abril de 2022, o relatório denunciou o cenário de emergência humanitária provocado pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.
Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, afirmou que é necessário responsabilizar a gestão de Jair Bolsonaro (PL) por permitir o agravamento da situação. Ela disse que na Casai há indígenas “adultos com peso de crianças e crianças em pele e osso”.
“Nós viemos aqui, nessa comitiva, para constatar essa situação e também tomar as medidas cabíveis para resolvermos esse problema”, pontuou.
Ações do governo
Nesta segunda-feira (23), uma equipe da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) chega a Boa Vista com 13 profissionais que devem atuar no Hospital de Campanha Aeronaútica. A estrutura deve ser transferida do Rio de Janeiro para a capital de Roraima e montada até a próxima sexta-feira (27/01).
Ainda conforme o governo federal, no sábado, profissionais, equipamentos, material médico, uma ambulância, duas barracas e médicos especialistas foram transferidos da Operação Acolhida, que cuida da imigração venezuelana no Brasil, à Casai.
Cinco mil cestas básicas também devem ser distribuídas ao povo Yanomami, além de 200 latas de suplemento alimentar para crianças. Neste domingo (22/01), a Força Aérea Brasileira (FAB) afirmou que fez o transporte de 2,5 toneladas de alimentos para a Terra Indígena Yanomami.
Junto a Lula estavam a ministra da Saúde, Nísia Trindade, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, o ministro da Defesa, José Múcio, o ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida e a presidente da Funai, Joenia Wapichana.
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Marina no clima
Reunião de Lula com Marina supera desavenças passadas e aponta para o que mais interessa: controlar e reduzir os fatores de emissões
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Lula inicia seu terceiro mandato como presidente. Marina é a única pessoa a compor o seu ministério nos três mandatos, embora não o tenha integrado durante a maior parte do segundo. Depois de 15 anos, ela retorna ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), com o acréscimo de “e Mudança do Clima” no seu nome.
Esse acréscimo não é formalidade, mas institucionaliza o que já foi feito e o que é preciso fazer. Lula e Marina lideraram um processo, envolvendo muitas outras pessoas e partes, que promoveu a maior redução de emissões de gases do efeito estufa já ocorrida na história recente, através da redução do desmatamento na Amazônia entre 2006 e 2012. Isto ocorreu através do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm), que foi retomado pelo presidente e pela ministra já nos primeiros dias de governo. O novo mandato começa sob a égide da emergência climática, com muitas cidades do Sudeste inundadas pelas fortes chuvas, enquanto o interior do Rio Grande do Sul amarga uma severa estiagem.
No âmbito pessoal e político, a reunião de Lula com Marina supera desavenças passadas e aponta para o que mais interessa: controlar e reduzir os fatores de emissões, enquanto se buscam as melhores opções de proteção aos diversos atores sociais e à sua própria condição de diversidade.
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Depois de 15 anos, Marina retorna ao Ministério do Meio Ambiente, agora com novo nome: Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima|Ricardo Stuckert
Amazônia em guerra
Porém, a Amazônia não é mais a mesma dos primeiros dois mandatos de Lula. Já se sabia antes que o desenvolvimento econômico sustentável requer investimentos públicos e privados contínuos e estrategicamente direcionados para superar a concorrência predatória, além de articulações sólidas nas cadeias envolvidas, para isolar a produção predatória. Com anos seguidos de desinvestimento público e de aprofundamento da conivência do Estado, a grilagem de terras e a extração ilegal de madeira, de ouro e de outras riquezas se agravaram.
A deliberada fragilização das operações de fiscalização e controle nos últimos anos, resultando em maior impunidade, bem como o estímulo à compra e à posse de armas, elevaram a criminalidade a patamares inéditos, em especial o tráfico de drogas, que disputa o uso de pistas clandestinas e de rotas fluviais estratégicas.
Houve, também, um lamentável recuo na ação fiscalizadora do Exército que, em outros tempos, reivindicava o exercício do poder de polícia na faixa de fronteira. Hoje, vastas regiões de fronteira estão sob o controle do tráfico, como se viu nos recentes assassinatos ocorridos no Vale do Javari (AM). A capacidade militar e de articulação política interna e externa das frentes predatórias está exponencialmente maior.
Corredor de Violência
Um caso emblemático é o do interflúvio Tapajós-Xingu, cortado pela BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA). Grande parte do investimento federal na Amazônia, desde os governos anteriores do Lula, destinou-se a obras públicas nesta região, como a pavimentação da BR-163 e de outras estradas, a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a implantação da Hidrovia do Tapajós. No entanto, não foram projetos focados na economia regional, mas na geração de energia para o sistema nacional, que atende, sobretudo, à demanda do centro-sul do país, e na exportação da produção de grãos do Centro-Oeste para os países do hemisfério Norte.
Em 2003, quando Lula anunciou a pavimentação da BR-163, movimentos e organizações sociais realizaram eventos em Itaituba, Santarém e Altamira, no Pará, e em Sinop, no Mato Grosso, para formular e sugerir ao governo um plano de desenvolvimento regional que se chamou “BR-163 Sustentável”, com medidas em várias direções. Parte delas foi efetivada, como a criação de um mosaico de conservação estadual e federal no interflúvio Xingu-Iriri, mas a maior parte foi descontinuada, por falta de presença e de atuação articulada dos poderes públicos na região.
Os investimentos federais resultaram em incremento menor do que o anunciado na geração de energia e no escoamento de grãos, e em danos maiores do que o previsto. Na região, favoreceram o aumento do desmatamento, da grilagem de terras, da contaminação dos rios e da violência armada. A população de cidades que dependem do garimpo predatório, como Itaituba e Jacareacanga, apresentam os piores índices de desenvolvimento humano do país.
Não por acaso, a BR-163 foi objeto de vários bloqueios golpistas após a eleição de Lula, e de lá vieram pessoas e recursos para bancar acampamentos e atos terroristas em Brasília. Esse caso evidencia que a redução do desmatamento em regiões críticas da Amazônia – e de outros biomas – dependerá da retomada de políticas públicas estratégicas pelo Estado.
Grande parte do ouro, do ipê, da cocaína e dos peixes ornamentais extraídos ilegalmente da Amazônia se destina ao mercado mundial. Da mesma forma, embora os danos socioambientais diretos afetem muito mais as populações locais, o aumento das emissões oriundas do desmatamento pode anular o resultado, do ponto de vista do clima, dos esforços dos países que tentam reduzi-las de fato.
Para sanear as cadeias produtivas contaminadas pela violência socioambiental, assim como para impedir a lavagem do respectivo dinheiro, serão necessárias providências transversais, dentro e fora do país. Da mesma forma, a redução do desmatamento e a gestão de projetos sustentáveis dependerá tanto de recursos públicos quanto dos oriundos da cooperação internacional, mas também da abertura de mercados e da valorização dos serviços agregados às cadeias produtivas da sociobiodiversidade.
É providencial o retorno de Lula e Marina e de um governo comprometido com a soberania efetiva da Amazônia e com a saúde do clima mundial. Com mais quatro anos de predação, talvez chegássemos ao ponto do não-retorno. O Brasil e o mundo não podem perder essa preciosa oportunidade de reverter a emergência climática e permitir melhores perspectivas de vida para as futuras gerações.
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"Nunca mais um Brasil sem nós": Sônia Guajajara e Anielle Franco tomam posse em cerimônia conjunta
Em evento emocionante e repleto de simbolismos, ministras reforçaram a importância da transversalidade para promover políticas públicas efetivas
Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas e Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, tomaram posse juntas em Brasília|Ricardo Stuckert
Uma multidão colorida e diversa ocupou o Palácio do Planalto nesta quarta-feira (11/01) para a cerimônia de posse das ministras Anielle Franco, da Igualdade Racial, e Sônia Guajajara, dos Povos Indígenas. Emocionante e repleto de simbolismos, o evento teve cantos e danças dos povos Guarani e Terena e do Afoxé Ogum Pá.
“Hoje, vocês todos estão presenciando um momento de transição histórica, tal qual foi a singular colaboração indígena na Assembleia Nacional Constituinte”, afirmou Sônia sobre a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), inédito na história do país.
“Naquela ocasião, um passo muito importante foi dado com o fim do paradigma integracionista e da tutela. Hoje, vocês presenciam um passo ainda maior, e esperamos com isso fazer respeitar a nossa existência e o nosso protagonismo. O Brasil do futuro precisa dos povos indígenas”.
A cerimônia contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice Geraldo Alckmin, da primeira-dama Janja Lula da Silva e do ministro da Justiça, Flávio Dino, além de autoridades e lideranças como a deputada federal eleita Célia Xakriabá (PSOL-MG), o xamã Davi Kopenawa Yanomami, a mãe yalorixá Dora de Oyá e Joênia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que agora passa a integrar o MPI.
Sônia anunciou a recriação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI). Inovação na governança de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, o colegiado, que garante a participação social no Poder Executivo, havia sido extinto pelo governo Bolsonaro. "Esse ministério chega comprometido com a promoção de uma política indígena, não mais uma política indigenista, em todo o território nacional”, disse a ministra.
A composição da equipe ministerial também foi definida: o advogado Eloy Terena será o secretário-executivo do ministério. Jozi Kaingang, chefe de gabinete; Eunice Kerexu, secretária de Direitos Ambientais e Territoriais; Ceiça Pitaguary, secretária de Gestão Ambiental e Territorial Indígena; Juma Xipaia, secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas; e Marcos Xukuru, assessor especial.
Em seu discurso, Sônia destacou a importância das Terras Indígenas e do conhecimento dos povos e comunidades tradicionais na luta contra o aquecimento global e pela preservação da biodiversidade, e fez um chamado às autoridades do governo federal e locais, pela importância da transversalidade na construção de políticas públicas. “São séculos de violências e violações, e não é mais tolerável aceitar políticas públicas inadequadas aos corpos, às cosmologias e as compreensões indígenas sobre o uso da terra.”
A ministra lamentou a morte de diversas lideranças indígenas e ambientalistas defensores da floresta e cobrou justiça pelos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, no Vale do Javari. Ela lembrou ainda os milhares de indígenas mortos durante a pandemia de Covid-19 “pelo negacionismo científico e criminoso” do governo Bolsonaro, e sublinhou a importância da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que mobilizou, por meio de suas organizações regionais, barreiras sanitárias, campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos e garantiu vitórias judiciais relevantes com a atuação dos advogados indígenas.
Sônia afirmou que a prioridade do MPI será tratar de questões estruturais como o desmatamento, o garimpo ilegal e a grilagem, que provocam intoxicação por mercúrio e agrotóxicos, aumentam a insegurança alimentar e ameaçam de extinção os povos isolados e de recente contato. “Muitos povos indígenas vivem uma verdadeira crise humanitária em nosso país, e agora estou aqui para trabalharmos juntos para acabar com a normalização desse estado inconstitucional que se agravou nesses últimos anos”, disse Guajajara ao presidente Lula.
"É urgente promovermos uma cidadania indígena efetiva. Isso não se faz sem demarcação de territórios, proteção e gestão ambiental e territorial, acesso à educação, acesso e permanência à universidade pública, gratuita e de qualidade, ampla cobertura e acesso à saúde integral", disse a ministra. "Não será fácil superar 522 anos em quatro, mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande retomada da força ancestral, da alma e espírito brasileiros. Nunca mais um Brasil sem nós!", finalizou, coroando o presidente Lula com um cocar.
A existência dos povos indígenas no Brasil é cercada por uma leitura extremamente distorcida da realidade. Ou nos romantizam ou nos demonizam. Nós não somos o que, infelizmente, muitos livros de história costumam nos retratar.
Nós existimos de muitas e diferentes formas. Estamos nas cidades, nas aldeias, nas florestas, exercendo os mais diversos ofícios que vocês possam imaginar. Vivemos no mesmo tempo e espaço que qualquer um de vocês. Somos contemporâneos desse presente e vamos construir o Brasil do futuro, porque o futuro do planeta é ancestral. (Sônia Guajajara)
Igualdade Racial
Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial do Brasil, fez um discurso firme contra o racismo estrutural nas instituições brasileiras e, assim como Sônia Guajajara, reforçou a importância da transversalidade na atuação da pasta. "Daremos um passo à frente na institucionalização da luta política antirracista com esse ministério, trazendo o racismo para o debate público, institucional, de um modo até então não vivenciado pela política brasileira, uma conquista fruto das mobilizações sociais incessantes que antecederam e culminaram nesse momento", frisou.
"Em meio a uma política de morte, nossa resposta foi a luta pela vida", disse, lembrando o contexto político nacional desde o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff, também presente na cerimônia. Emocionada, a ministra homenageou a irmã Marielle Franco, ex-vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 14 de março de 2018, e elencou uma série de ações voltadas ao combate à desigualdade racial, fortalecendo especialmente o papel das mulheres negras.
A ministra disse que vai trabalhar por políticas públicas "concretas", como a ampliação da Política de Cotas, garantindo a presença de jovens negros e pobres nas universidades públicas; assegurar a visibilidade e presença de servidores negros e negras em cargos de tomada de decisão da administração pública; fortalecer a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e também anunciou o relançamento do Programa Juventude Negra Viva, que promoverá ações para reduzir a letalidade contra a juventude negra e ampliar as oportunidades para jovens brasileiros.
"Precisamos, enquanto sociedade, ter uma conversa franca e honesta que países no mundo inteiro já estão fazendo: encarar a realidade de que essa política da guerra nas favelas e periferias nunca funcionou. Pelo contrário. Apenas segue dilacerando famílias e alimentando um ciclo de violência sem fim", reforçou.
Anielle Franco também fez duras críticas sobre as manifestações golpistas de domingo. “O mesmo projeto que permite que as vidraças deste palácio tenham sido destruídas, é o projeto que mata todos os dias pessoas como o catador Dierson Gomes da Silva, da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Combater o racismo e o fascismo parte — também — da luta por justiça, reparação e por democracia”.
No encerramento da cerimônia, o presidente Lula sancionou uma lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, aumentando a pena para dois a cinco anos de prisão. O crime passa a ser inafiançável e imprescritível.
Confira a composição do Ministério da Igualdade Racial:
Roberta Eugênio, Secretaria Executiva;
Márcia Lima, Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação do Racismo;
Iêda Leal, Secretaria de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial;
Ronaldo dos Santos, secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos; e
Flávia Tambor, chefa de gabinete.
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Política indígena
Ministério dos Povos Indígenas, Funai e Secretaria de Saúde Indígena serão dirigidos por lideranças indígenas
Márcio Santilli
- Sócio fundador e presidente do ISA
Uma novidade histórica do governo Lula é a política indígena, em vez de indigenista, que será implementada a partir de agora. Foi criado o Ministério dos Povos Indígenas, ao qual ficará subordinada à Funai, que passa a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Ambos, assim como a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, serão dirigidos por lideranças indígenas. Sônia Guajajara, Joênia Wapichana e Weibe Tapeba, respectivamente, serão os seus dirigentes.
Esses nomes foram encaminhados ao presidente Lula pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), na forma de uma lista tríplice para a escolha d@ ministr@. Sônia coordenou a Apib nos últimos anos e foi eleita deputada federal por São Paulo; Joênia encerra o mandato como primeira deputada federal indígena, por Roraima, e Weibe é vereador em Caucaia (CE) há vários mandatos. Lula escolheu Sônia para acolher o PSOL no Ministério, mas aproveitou Joênia e Weibe em outras funções-chave.
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Weibe Tapeba, secretário de Saúde Indígena |Reprodução - Instagram @weibetapeba
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Joenia Wapichana, presidente da Funai 📷Câmara dos Deputados Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas 📷Instagram (@guajajarasonia)
O protagonismo indígena sobre as políticas públicas levará outros quadros oriundos do movimento para funções de governo, como o advogado Eloy Terena, que será secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas.
Ocorre, também, intensa movimentação nas comunidades e nas organizações indígenas locais para apresentar nomes para as coordenações regionais da Funai e da Sesai, contra as habituais indicações de partidos, reduzindo a influência de interesses de terceiros sobre os territórios indígenas e os seus recursos naturais. O protagonismo político local, por sua vez, deve fortalecer a participação indígena nas próximas eleições municipais.
Em 1 de fevereiro, tomará posse o novo Congresso Nacional, onde atuará, além de Sônia Guajajara, que vai se licenciar do mandato para assumir o MPI, a deputada federal Célia Xakriabá, eleita por Minas Gerais, e que deverá coordenar a Frente Parlamentar dos Povos Indígenas, substituindo Joênia. Outr@s deputad@s e senador@s que também se identificam como indígenas, como Juliana Cardoso, do PT de São Paulo, e Silvia Waiãpi, do PL do Amapá. A ocupação de espaços políticos não se dá só a partir de partidos de esquerda, mas a forte simbologia política indígena também vem sendo capturada por forças de direita.
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Célia Xakriabá, deputada federal por Minas Gerais |Reprodução - Instagram @celia.xakriba
Nada será como antes
O protagonismo político indígena é crescente desde o final da ditadura militar, mas se fortaleceu de forma inédita no enfrentamento aos retrocessos promovidos pelo governo anterior. O Acampamento Terra Livre, realizado anualmente no mês de abril em Brasília, reuniu mais de seis mil representantes indígenas de todo Brasil em sua última edição. A Apib foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como competente para ingressar com Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs). A expressiva votação alcançada por candidatos indígenas nas capitais é uma evidência do acolhimento desse protagonismo indígena por parcelas crescentes da sociedade.
A nomeação de indígenas para conduzir as políticas do seu interesse decorre da generosidade do presidente Lula, que também decorre da sua percepção de que o movimento indígena foi capaz de se fortalecer, mesmo sob as mais adversas condições políticas. São conquistas históricas, não apenas transitórias. Os interesses incidentes nos territórios e demais direitos indígenas terão que ser tratados diretamente, e não através de prepostos ou supostos tutores.
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Da esquerda para a direita: Sonia Guajajara, Lula, Joenia Wapichana e Célia Xakriabá |Ricardo Stuckert
Não serão pequenas as dificuldades, mas essa nova geração de dirigentes indígenas está pronta para enfrentá-las. Ela não poderá subestimar a força objetiva dos interesses que serão contrariados, estará sujeita às vicissitudes próprias da atuação partidária e administrativa, mas aprenderá muito mais ainda sobre a própria natureza da política, com os seus prós e contras.
Aqui não vai nenhum desprezo pelo indigenismo sério, historicamente praticado por pessoas e instituições que foram e continuam sendo fundamentais para a resistência dos povos indígenas à sanha colonial. Muitos sacrificaram as suas vidas nesse processo, e Bruno Pereira foi apenas o mais recente. Mas o momento, agora, é o da política indígena, e todos nós devemos nos orgulhar pelo privilégio de partilharmos esse novo tempo.
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Sem anistia para os ataques à democracia
Nota do ISA sobre o terrorismo golpista que atacou os Três Poderes neste domingo (08/01)
O Instituto Socioambiental (ISA) repudia veementemente os ataques terroristas à democracia brasileira deste domingo (08/01), em Brasília, que resultaram em agressões físicas, na invasão das instituições dos Três Poderes e na depredação de obras de arte históricas e bens públicos.
O Estado deve agir com seriedade e celeridade para identificar e responsabilizar os indivíduos envolvidos com a tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, inclusive e especialmente seus financiadores, muitos deles ligados a empresários do agronegócio e do garimpo predatório, conforme afirmou o presidente Lula em pronunciamento.
Ainda se faz necessário apurar ações e omissões das autoridades competentes.
Seguiremos firmes em defesa da democracia, do meio ambiente e das populações que vivem e protegem seus territórios.
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Veja quais foram as primeiras medidas socioambientais do governo Lula
Decretos retomam políticas públicas e promovem uma reestruturação do Executivo, com a criação de novos ministérios e redistribuição de competências
Nas primeiras horas após tomar posse, no dia 1º de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou uma série de decretos e medidas que retomam políticas públicas socioambientais e promovem mudanças na estrutura de governo, com a criação ou recriação de novos ministérios, reorganizações internas e redistribuição de competências. Com isso, ele avança em seu compromisso de fortalecer a proteção dos povos e comunidades tradicionais e combater o desmatamento e as mudanças climáticas.
Muitas das medidas estão apoiadas por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do “Pacote Verde”, as sete ações sobre meio ambiente que contestaram, na Corte, o desmonte das políticas socioambientais durante o governo Bolsonaro. O julgamento de uma das ações (ADPF 760), foi citado no relatório final do governo de transição como base para as mudanças anunciadas.
Os primeiros atos do Presidente na área ambiental demonstram que o tamanho do compromisso assumido vai além dos discursos. Segue a lista!
Confira o que foi feito em relação às políticas socioambientais:
Revisão do processo de autuação ambiental
A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, revogou atos do governo anterior que colocavam entraves no julgamento de infrações ambientais autuadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Em 2019, foi implementada uma nova fase de “conciliação” com o infrator, que, na prática, causava a paralisação do processo até que fosse realizada uma audiência, inviabilizando a tramitação de todo o processo. A medida de Salles levou o número de julgamentos do órgão a cair exponencialmente, de uma média de 5,3 mil anuais entre 2014 e 2018 para somente 17 em 2020.
Ainda foi resolvido um problema formal criado pelo ex-presidente do Ibama, que colocava sob risco de prescrição milhares de autos de infração lavrados pelo órgão.
Com a revisão feita pela nova ministra, fica determinado ainda que os autos de infração deverão ser públicos e disponibilizados na internet e que 50% dos valores arrecadados em multas deverão ser revertidos para o Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).
Restabelecimento do PPCDAm
Criado em 2004, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) foi o principal responsável pela redução do desmatamento no bioma em mais de 80% entre 2004 e 2012. Apesar de bem-sucedida, a política foi extinta pelo governo Bolsonaro, que elevou a derrubada da Amazônia em 59%, em comparação aos quatro anos anteriores.
Uma das ações do ‘Pacote Verde’ no STF é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 760, que pede a retomada e cumprimento urgentes do PPCDAm, além do fortalecimento dos órgãos socioambientais. Em voto histórico proferido em abril de 2022, a ministra Cármen Lúcia, relatora da ação, acolheu as alegações e declarou a existência de um “estado de coisas inconstitucional”. O ISA é uma das organizações da sociedade civil responsáveis pela elaboração desta ADPF.
Agora, além de retomar o PPCDAm e também o PPCerrado, a norma publicada pelo governo Lula procura ampliar a política de controle ao desmatamento, estabelecendo, de forma inédita, planos específicos para os biomas Caatinga, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal. Também institui a Comissão Interministerial Permanente de Prevenção e Controle do Desmatamento, sublinhando a necessidade de se tratar desta questão de forma multidisciplinar, transversal e integrada. Dezessete ministérios, sob o comando da Casa Civil, participarão da implementação dos planos de ação.
Retomada do Fundo Amazônia e do Fundo Nacional do Meio Ambiente
Paralisado no governo Bolsonaro, o Fundo Amazônia concentra mais de três bilhões de reais disponíveis para uso no combate ao desmatamento e crimes ambientais, além de projetos que incentivem a proteção da floresta. Os conselhos do Fundo foram restabelecidos, pois haviam sido extintos pela gestão anterior.
No caso do Fundo Nacional do Meio Ambiente, a participação social foi novamente contemplada, já que havia sido eliminada pelo governo Bolsonaro. A paralisação do Fundo Amazônia e do Fundo Nacional do Meio Ambiente também foi objeto de julgamento no Pacote Verde no STF (ADO 59 e ADPF 651, respectivamente).
Com a recomposição das estruturas de governança, países financiadores, como Noruega e Alemanha, sinalizaram novos aportes; enquanto novos parceiros, como Reino Unido, indicaram interesse em contribuir com a defesa ambiental no Brasil.
Criado em 1981, o colegiado é responsável por assessorar e propor ao governo as políticas prioritárias na área ambiental e estabelecer normas e diretrizes técnicas, com efetiva participação de órgãos federais, estaduais e municipais, do setor privado e da sociedade civil.
No governo anterior, porém, o desmonte e a desestruturação do Conama deram maior poder de decisão ao governo federal e diminuíram a participação popular, o que foi considerado inconstitucional pelo STF (ADPF 623).
Revogação de decreto pró-garimpo
Assinado em fevereiro de 2022, o Decreto de nº 10.966, revogado pelo governo Lula, flexibilizava as leis de combate ao garimpo ilegal. Nele, foram criados o “Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala” e a “Comissão Interministerial para o Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala”, que buscavam, na prática, estimular o garimpo ilegal, inclusive em Terras Indígenas e outras Áreas Protegidas.
Atividade comandada por esquemas milionários e com conexões com o crime organizado, o garimpo gera graves problemas humanitários e ambientais. Em 2020, os três povos indígenas mais afetados pelo garimpo no Brasil – Yanomami, Munduruku e Kayapó – formaram uma aliança para pressionar pelo fim das invasões.
Confira as principais mudanças socioambientais na estrutura do Governo Lula:
Criação do Ministério dos Povos Indígenas e retomada da Funai
Promessa de campanha, a oficialização do Ministério dos Povos Indígenas já é um marco histórico na política nacional. Comandada pela deputada federal Sonia Guajajara (Psol-SP), a pasta inclui em sua estrutura a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que foi renomeada e será presidida pela primeira vez por uma indígena, a deputada federal Joenia Wapichana (REDE-RR).
Além disso, a pasta recria órgãos extintos pelo governo Bolsonaro, como o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), colegiado que garante participação social na formulação de políticas públicas para os povos indígenas.
O ministério retomará a implementação de políticas paralisadas pela gestão anterior, como a demarcação e proteção de Terras Indígenas e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), um dos maiores avanços na gestão autônoma e sustentável dos territórios indígenas.
Estive no ato organizado pelos servidores " Retomada da Funai", juntamente com a nossa Ministra @GuajajaraSonia a dep. federal eleita @celiaxakriaba, nosso Secret. Saúde Indígena @weibetapeba e o Cacique Raoni, na sede da Fundação Nacional do Povos Indígenas. Ato histórico! pic.twitter.com/TRyhHjlH0J
Criação da Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente na Polícia Federal
O decreto que reestrutura o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) retira a Funai de sua estrutura, estabelece competência de apoio a conflitos envolvendo indígenas e cria a Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente na Polícia Federal (PF).
A nova diretoria é responsável por dirigir, planejar, coordenar, controlar, executar e avaliar as atividades de prevenção e repressão das infrações penais contra o meio ambiente, o patrimônio histórico e cultural e os povos originários e comunidades tradicionais, bem como a segurança pública na região da Amazônia Legal e unidades operacionais e de gestão integrada brasileiras estabelecidas na Amazônia Legal.
Reestruturação do Ministério do Meio Ambiente
A pasta passa a se chamar Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, inserindo a pauta climática no centro da agenda socioambiental, e estará sob o comando de Marina Silva, deputada federal, ministra do Meio Ambiente nos primeiros governos Lula (2003-2008) e ex-senadora pelo Acre por dois mandatos, entre 1995 e 2011.
O decreto também reinsere o Serviço Florestal Brasileiro em sua estrutura e assume entre suas competências a gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento de planejamento ambiental e combate ao desmatamento em propriedades rurais.
Além disso, a pasta vai tratar de agendas-chave para a questão ambiental, como a bioeconomia e uso sustentável de ecossistemas, e inserir o tema dos oceanos e gestão costeira na Secretaria Nacional de Mudança do Clima. Retornam, também, as agendas que envolvem povos e comunidades tradicionais.
Reorganização da governança sobre povos e territórios quilombolas
Sob comando da ministra Anielle Franco, o novo Ministério da Igualdade Racial será responsável por tratar de políticas relacionadas a quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais.
Já o Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar abrigará o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e será responsável pelo reconhecimento de territórios quilombolas e outros territórios tradicionais. O Ministério da Cultura, onde está localizada a Fundação Cultural Palmares, por sua vez, fica com a função de auxiliar as ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural das comunidades quilombolas.
Inclusão da transição energética na organização do MME
Ficou definida a inclusão da transição energética na antiga Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia (MME). O órgão passa a se chamar Secretaria de Planejamento e Transição Energética e está prevista a criação de um departamento voltado exclusivamente para o tema.
Criação da Procuradoria Nacional de Defesa do Clima e do Meio Ambiente na AGU
A Advocacia-Geral da União (AGU), agora comandada pelo ministro Jorge Messias, passará a contar, em sua estrutura, com a Procuradoria Nacional de Defesa do Clima e do Meio Ambiente, de acordo com o Decreto nº 11.328, assinado pelo presidente Lula.
A Procuradoria vai trabalhar de maneira transversal junto aos órgãos e as entidades da agenda ambiental e fortalecer a atuação dos órgãos jurídicos dedicados à temática para, de acordo com Messias, “encontrar novas soluções jurídicas que harmonizem as diferentes políticas setoriais com a política ambiental, para viabilizar as transformações necessárias à efetividade da transição ecológica”.
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Começa a retomada das políticas socioambientais
Medidas anunciadas pelo Presidente da República e reorganização ministerial acontecem após quatro anos de retrocessos
Após quatro anos de intenso desmonte da legislação socioambiental, confessada por ex-ministro do meio ambiente com o nome de “boiadas”, o atual governo começa a reconstruir as bases normativas destruídas pela gestão anterior. Os principais retrocessos foram objeto de ações judiciais ajuizadas por partidos e organizações da sociedade civil, como o Instituto Socioambiental (ISA), que geraram decisões importantes para balizar a restauração da gestão pública no tema.
De início, houve a retomada do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm, política pública de Estado que, entre 2004 e 2012, foi responsável por reduzir as taxas de desmatamento no bioma em 83%.
Após dezesseis anos de aplicação, o governo anterior realizou sua extinção, sem substituição, o que gerou o ajuizamento de ação no Supremo Tribunal Federal (ADPF 760). Incluído no julgamento do Pacote Verde, ocorrido no ano passado, o caso teve ampla repercussão e resultou, pela primeira vez na história, no reconhecimento judicial sobre a existência de um “estado de coisas inconstitucional” em matéria ambiental, conforme constou do voto da relatora, ministra Carmén Lúcia, o que significa o descontrole completo da proteção ao meio ambiente.
Este julgamento foi expressamente citado no relatório final do governo de transição como base para a adoção das medidas agora anunciadas. Lembre-se ainda que o voto da ministra também determina, entre outras medidas, o fortalecimento imediato dos órgãos com atuação na agenda socioambiental, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Também se mostra positiva a intenção de construir políticas similares ao PPCDAm para outros biomas, como Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e Pantanal, além do Cerrado, que já conta com um plano próprio.
Foram restabelecidas, ainda, as estruturas de funcionamento do Fundo Amazônia e do Fundo Nacional do Meio Ambiente, então paralisados pela gestão anterior, igualmente resultante de decisões do STF (respectivamente, ADO 59 e ADPF 651). Há mais de três bilhões de reais disponíveis no primeiro, recursos historicamente utilizados pelo Ibama e pelos estados no combate ao desmatamento e outros crimes ambientais.
Com a sua recomposição, países financiadores, como Noruega e Alemanha, sinalizaram novos aportes, na expectativa de contribuir com a redução do desmatamento durante o atual governo.
A participação social voltará a servir de norte para a aplicação de políticas públicas, como se nota das competências da Secretaria-Geral da Presidência e outras instâncias. Além da recomposição dos conselhos do Fundo Amazônia e do Fundo Nacional do Meio Ambiente, o Presidente da República determinou a revisão do esvaziamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) no prazo de 45 dias.
O desmonte do colegiado foi apreciado pelo STF (ADPF 623), o qual reconheceu a inconstitucionalidade das mudanças realizadas e, segundo voto da ministra Rosa Weber: “ao conferir à coletividade o direito-dever de tutelar e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Constituição exigiu a participação popular na administração desse bem de uso comum e de interesse de toda a sociedade”.
Outro destaque é a revogação de entraves criados pela gestão anterior sobre o julgamento de Autos de Infração pelo Ibama. Desde 2019, os processos sancionadores ambientais estão praticamente estagnados, quando o antigo governo editou Decreto para incluir uma nova fase ao processo administrativo, de conciliação com o infrator, cuja principal consequência é suspender a tramitação processual até a realização de uma audiência.
A medida levou o número de julgamentos no órgão a cair de uma média de 5,3 mil anuais, entre 2014 e 2018, para somente 113 em 2019 e meros 17 em 2020. Ainda havia risco de prescrição de mais de cinco mil autuações. Com os aperfeiçoamentos realizados pelas novas normas da atual gestão, resolvem-se estas ameaças e fica restabelecida a tramitação regular de processos sobre Autos de Infração, importante mecanismo de dissuasão ao cometimento de ilícitos ambientais.
Por fim, houve a revogação de Decreto, editado pela gestão anterior, que estimulava o garimpo ilegal, com ameaças a Terras Indígenas e outras áreas protegidas.
Tendo em vista a profundidade do abismo gerado pelo desmonte socioambiental nos últimos quatro anos, ainda se espera que novos “revogaços” e revisões normativas ocorram nos próximos dias.
Mas estas medidas publicadas no início do governo, somadas à reorganização ministerial (como a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e o fortalecimento das estruturas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima), constituem sinais da retomada da efetividade das políticas públicas destinadas a proteger o meio ambiente, povos indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais.
* Mauricio Guetta é consultor jurídico do ISA e professor de Direito Ambiental
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Retrospectiva 2022: retrocessos e resistências na luta dos povos indígenas
Fique Sabendo da quinzena relembra os principais acontecimentos socioambientais do ano e os avanços e reveses do período
Povos indígenas em marcha durante o Acampamento Terra Livre, momento de resistência em Brasília|Cassandra Mello/Terra Floresta Filmes/ISA
2022 foi marcado por retrocessos e resistências na luta socioambiental. Desmatamento, garimpo e grilagem seguiram crescendo e ameaçando as Terras Indígenas e os povos da floresta. No entanto, a esperança se fez presente mês a mês com estratégias de resistências locais e com a possibilidade de um novo governo no próximo ano, com protagonismo dos povos indígenas no Congresso e no novo Ministério dos Povos Originários.
O Fique Sabendo dessa quinzena relembra reveses, avanços e lutas que marcaram o último ano na pauta socioambiental e dos povos indígenas do Brasil. Confira a retrospectiva:
Janeiro
No início do ano, um balanço socioambiental de 2021 produzido pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) mostrou que a Amazônia teve o pior desmatamento da década. Mais de 10 mil km² de mata nativa foram completamente devastados em apenas um ano. O balanço de 2021 para os povos indígenas isolados também foi negativo. Esses povos começaram o ano commais de 3 mil hectares recém desmatados nos 12 meses anteriores, segundo dados do boletim Sirad-I, produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Mas o ano também começou com ares de esperança: a primeira criança vacinada no Brasil contra a Covid-19 foi indígena. Davi Seremramiwe, Xavante de 8 anos, natural do Mato Grosso, foi imunizado em São Paulo e deu início à vacinação infantil no país contra o vírus que matou mais de 600 mil brasileiros desde 2020 e que afetou gravemente os povos indígenas.
A Vacina é um ato de honra aos nossos ancestrais!
Hoje foi um dia simbólico na Luta Pela Vida. Vacinamos o primeiro parentinho, uma criança indígena imunizada contra o vírus e todo o projeto de morte do governo Bolsonaro.
Fevereiro começou com um avanço: a pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu um ofício do governo Bolsonaroque restringia a atuação da Funai a áreas homologadas, ou seja, somente aquelas com todas as fases da demarcação concluídas. Barroso determinou que as ações de proteção da fundação devem ser mantidas independentemente de homologação ou não da área.
Logo no início do ano, lideranças indígenas alertaram para a situação dos parentes isolados no Vale do Javari, no Amazonas. A Covid-19 voltou a representar uma ameaçapara essas comunidades indígenas: a imunização da terceira dose estava atrasada para eles. Indígenas denunciaram que anciões estavam morrendo em um momento em que, nos centros urbanos, a vida já parecia voltar à “normalidade”. Na aldeia Maronal, no Vale do Javari, quatro anciãos do povo Marubo morreram entre novembro de 2021 e fevereiro deste ano com suspeita de Covid-19.
Março
Em março, a luta dos povos isolados pela proteção de suas terras seguiu sofrendo ameaças. A portaria de restrição de uso da Terra Indígena Piripkura, no Mato Grosso, expirou após ser renovada por apenas seis meses em 2021. Em abril de 2022, ela foi renovada de novo, também por apenas seis meses. Denúncias feitas pela Apib e pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) mostraram que parte da TI foi a leilãopara sanar as dívidas de uma das propriedades que invadiu o território.
O mês de março também foi marcado pela retomada das discussões sobre mineração em Terras Indígenas. O PL nº 191/2020, que pretende legalizar o garimpo em território indígena, foi incluído na agenda legislativa prioritária do governo federal para o ano e provocou tensões por ser considerado um “libera geral” para a exploração minerária dentro de Áreas Protegidas. Ao longo de todo o ano, os povos indígenas resistiram e se mobilizaram contra a aprovação do PL. As mobilizações seguiram durante todo o mês de abril.
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Indígenas protestam contra o PL do Garimpo, que pretende legalizar a mineração em Terras Indígenas|Cassandra Mello/Terra Floresta Filmes/ISA
Abril
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No ATL, Lula se compromete com Ministério dos Povos Originários |Benjamin Mast/La Mochila Produções/ISA
Abril, mês dos povos indígenas, foi marcado por demonstrações de esperança e possibilidades de um futuro melhor em meio a tanto retrocesso. Povos e organizações indígenas de diversas partes do país se reuniram em Brasília no tradicional Acampamento Terra Livre, que completou 18 anos de (re)existência. Com o tema ‘Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política’, o acampamento pautou a luta contra o “Pacote da Destruição”, uma série de proposições legislativas danosas ao meio ambiente e aos povos indígenas que estavam na agenda prioritária do Congresso em 2022.
Ainda em abril, a Hutukara Associação Yanomami lançou relatórioinédito com dados, imagens aéreas e relatos da criminosa invasão de garimpeiros ilegais dentro da Terra Indígena Yanomami. Segundo dados extraídos do relatório, em 2021 o garimpo ilegal avançou 46% em comparação com 2020. O número de comunidades afetadas diretamente pelo garimpo ilegal soma 273, abrangendo mais de 16 mil pessoas, ou seja, 56% da população total do território. Acesse o relatório e saiba mais.
Maio
Em maio, a onda de ataques violentos aos povos indígenas que marcaram o ano de 2022 teve como alvo os Parakanã, da Terra Indígena Apyterewa, localizada no Pará. Grileiros montados em cavalos invadiram duas aldeias Ka’a’ete e Tekatawa, instaurando o terror e escalando a tensão no território. Além da grilagem de terras, a região enfrenta o avanço do garimpo ilegal.
Após experiências traumáticas com obras de infraestrutura, o povo Arara publicou protocolos de consulta para garantir direito ao território e sua proteção. Dois protocolos foram lançados: um escrito pelos Arara da Terra Indígena Cachoeira Seca e outro, pelos Arara da TI Arara.
O direito de consulta aos povos originários e tradicionais garante que nenhum empreendimento que tenha impacto nas TIs pode ser feito sem antes escutar a comunidade local. Essa consulta tem que cumprir um protocolo claro, com regras estabelecidas pelos próprios indígenas.
Junho
Junho foi marcado por uma das piores notícias do ano. Logo no início do mês foram iniciadas as buscas pelo indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, que haviam desaparecido durante uma incursão no território do Vale do Javari. Pouco mais de dez dias depois, foi confirmado o assassinato de Bruno e Dom. O cruel assassinato escancarou a situação de extrema violência contra os que defendem os povos indígenas e a proteção das florestas no Brasil, o 4º país que mais ameaça e mata ambientalistas.
Um dossiê produzido pela associação que congrega servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), a Indigenistas Associados (INA), e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), mostrou como Bolsonaro transformou a Funai em um órgão anti-indígena. O estudo revelou que apenas duas das 39 coordenações regionais da Funai eram chefiadas por servidores públicos.
Outras 19 eram coordenadas por membros das Forças Armadas; três por policiais militares e duas por policiais federais. Servidores da Funai entraram em greveno final de junho por conta desse descaso sistemático. Em manifesto, os indigenistas pediram exoneração de Marcelo Xavier da presidência do órgão.
Julho
O mês de julho foi marcado pela continuidade dos ataques de fazendeiros contra os indígenas Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Grande parte dos ataques teve como cenário a cidade de Amambaí, palco de uma disputa por um território indígena ancestralonde atualmente está localizada uma fazenda. No final de junho, dois indígenas foram mortos e sete ficaram feridos em uma tentativa de retomada do território ancestral. Em maio, um jovem indígena de 18 anos foi assassinado com ao menos cinco tiros em outra retomada dos Guarani Kaiowá. Já em julho, outro Guarani Kaiowá foi assassinado em uma emboscada também em Amambaí.
O mês de julho também foi de resistência! Na periferia de São Paulo foi lançada a feira Quilombo Quebrada, uma parceria de combate à fome e estímulo à segurança alimentarentre moradores periféricos e populações tradicionais. A feira leva mensalmente à periferia de São Paulo uma variedade de frutas, legumes e verduras produzidos pelos quilombolas do Vale do Ribeira.
Agosto
Em agosto, mês internacional dos povos indígenas, o "índio do buraco", último da terra Tanaru, foi encontrado morto em Rondônia.O “índio do buraco” já não tinha mais parentes, pois foram mortos em uma sequência de massacres de invasores, principalmente fazendeiros, que ainda cercam o território, no sul de Rondônia. Sem o “índio do buraco”, há receio de que fazendeiros aumentem as pressões pela invasão do território.
“Essa morte mostra a extinção de um povo em pleno século 21. Mostra que a política indígena não está protegendo os povos isolados”, disse a liderança e ativista Neidinha Suruí, da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. Por não ser demarcada, a Terra Indígena Tanaru está sob ameaça de invasões e ataques.
Ainda em agosto, o ISA lançou um estudo que mostra que os povos indígenas e tradicionais são essenciais para a preservação das florestas. A análise mostrou que nos últimos 35 anos essas populações protegeram mais de 20% da vegetação nativa no Brasil. Além da alta tecnologia social no manejo tradicional da florestas, a presença de povos indígenas amplia a governança sobre os territórios e promove contribuições socioambientais importantes para recuperar áreas degradadas. “As florestas precisam das pessoas, assim como as pessoas precisam das florestas”, sintetizou o estudo.
Setembro
No Rio Negro, Amazonas, lideranças indígenas denunciaram uma invasão garimpeiraem setembro. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) cobrou a retirada de dragas de garimpo de ouro que entraram ilegalmente em território indigena. O aumento da pressão do garimpo ilegal sobre as Terras Indígenas do Rio Negro está colocando a população em risco e levando ao crescimento de denúncias.
Levantamento realizado pelo ISA mostrou que havia, na época, cerca de 77 pedidos de exploração minerária nas áreas que compreendem as Terras Indígenas Jurubaxi-Téa, Rio Téa, Yanomami, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II e Cué-Cué Marabitanas.
A resistência dos povos indígenas ocupa diversos espaços. Nas ruas, na floresta e também nos palcos. Em setembro, os Brô MCs foram o primeiro grupo de rap indígena a se apresentar no festival Rock In Rio, no Rio de Janeiro. A apresentação também divulgou, a nível nacional, a campanha Isolados ou Dizimados, alerta para o risco que povos indígenas isolados de quatro áreas diferentes no país correm, caso o governo federal não tome providências legais para a proteção desses territórios.
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Brô Mcs: grupo de rap indígena do Mato Grosso do Sul gravou música em defesa dos parentes isolados e ameaçados|João Albuquerque/Dzawi Filmes/ISA
Outubro
Em outubro, o ISA lançou um estudo comprovando que o garimpo impede o progresso social na Amazôniae derruba os indicadores sociais. O garimpo afeta pelo menos 216 municípios e uma população estimada de 6 milhões de pessoas na Amazônia Legal, ainda de acordo com o levantamento. O Índice de Progresso Social (IPS) médio dos municípios amazônicos afetados pelo garimpo é de apenas 52,4, menor do que a média para a Amazônia, de 54,5, e bem abaixo da média nacional, de 63,3.
Outubro trouxe esperança com o resultado das eleições, mas também mostrou que os próximos quatro anos também serão de desafios para a luta socioambiental. A maior bancada indígena da história do país foi eleita neste ano, com grandes representantes como as lideranças indígenas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá para o Congresso Nacional.
Além disso, o país elegeu em segundo turno o presidente Lula, que prometeu uma mudança na política socioambiental com protagonismo dos povos indígenas. Apesar dos avanços, o governo Lula e a Bancada do Cocar enfrentarão opositores ferrenhos, como o deputado federal eleito Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente e principal responsável pela política anti-ambiental do governo Bolsonaro, e o senador Hamilton Mourão, vice-presidente de Jair Bolsonaro.
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Sônia Guajajara, Angela Kaxuyana e Célia Xakriabá em protesto na Alemanha: vozes globais pela vida dos povos indígenas e pelo clima|Greenpeace
Novembro
Em novembro, organizações indígenas cobraram uma investigação sobre o ataque a tiros que matou Ana Yanomami Xexana, em Boa Vista, Roraima, em mais um capítulo da guerra contra os Yanomami. Cerca de 30 indígenas estavam reunidos na Feira do Produtor, um local comum de estadia dos Yanomami quando estão de passagem pela cidade. Em outubro, um líder indígena e um adolescente ficaram feridos após ataque a tirosefetuados por garimpeiros na Terra Indígena Yanomami.
Neste fim de ano, a Terra Indígena Jacareúba-Katawixi, no Amazonas, completou um ano sem nenhuma proteção após o vencimento da Portaria de Restrição de Uso que protegia o território. Ela está entre as Terras Indígenas com a presença de povos isolados mais ameaçadas do país. Um levantamento do ISA mostrou que, entre agosto de 2021 e setembro de 2022, mais de 12 mil árvores adultas foram derrubadas no território.
O ano também termina com grandes expectativas sobre os próximos passos com a posse do novo governo a partir de janeiro de 2023. Um Grupo Técnico dos Povos Origináriosfoi formado para discutir os desafios da política indígena para o próximo ano, que deve ser marcada pela retomada imediata das demarcações, pelo fortalecimento e recomposição orçamentária dos órgãos indigenistas e ambientais, e pela retomada da fiscalização e monitoramento das Terras Indígenas.
Relatório produzido pelo GTindicou 13 Terras Indígenas em condições de terem demarcações homologadas já no primeiro mês do próximo governo. Entre os atos normativos anti-indígenas indicados para serem revogados imediatamente, está o parecer normativo 001/2017, publicado pelo ex-presidente Michel Temer, que prevê o Marco Temporal.
Outros seis atos normativos devem ser revogados imediatamente e outros quatro durante os 100 primeiros dias de Governo Lula. Um exemplo disso é o Decreto 10.965, que facilita a mineração dentro de terras indígenas e a Portaria 3.021, do Ministério da Saúde, que determina a exclusão da participação social nos Conselhos Distritais de Saúde Indígena.
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Em carta a Lula, mulheres yanomami pedem fim do garimpo: 'estamos com medo e muito preocupadas'
Mais de 40 lideranças se reuniram no XIII Encontro Anual de Mulheres Yanomami e descreveram os horrores provocados pelo crime organizado na Terra Indígena Yanomami
Mulheres Yanomami enviam carta a Lula e pedem o fim do garimpo ilegal em suas terras: 'queremos viver na floresta viva e bonita'|Juruna Yanomami/HAY
“Lula, nós mulheres Yanomami queremos enviar nossa palavra até você. Você está muito longe da Terra Indígena Yanomami, mas sabemos que você vai receber nossas palavras”.
Em carta ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, lideranças femininas reunidas no XIII Encontro Anual de Mulheres Yanomami pedem que o pesadelo provocado pela ação do garimpo ilegal na Terra Yanomami chegue ao fim.
No documento, enviado nesta segunda-feira (12/12), elas indicam a urgência da desintrusão do território, cuja invasão por dezenas de milhares de garimpeiros gera extrema violência – como ataques, estupros e o aliciamento de mulheres – e danos ao meio ambiente que comprometem a caça, a pesca e fazem proliferar doenças como a malária. As mulheres pedem também melhor estrutura de saúde e educação para as crianças.
“Queremos viver na floresta viva e bonita. Nós Yanomami queremos viver novamente na terra sadia, que é a verdadeira terra-floresta Yanomami. Nós queremos que nossas crianças continuem nascendo bem e fortes. Precisamos de sua ajuda para curar a floresta e também os animais que aqui vivem”, diz trecho da carta.
Com o aumento do garimpo, as doenças, os impactos ambientais e a violência dispararam no território indígena. As mulheres relatam que veem mudanças até mesmo nos animais, como nos peixes que parecem estar com “os olhos soltos”.
Segundo dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal (SMGI), o garimpo avança de forma desenfreada na Terra Indígena Yanomami. Ele ainda indica que, do início deste ano até agosto, a área destruída aumentou mais de 1.100 hectares. Desde dezembro de 2021, houve um aumento de 35% de devastação.
“A floresta está cheia de buracos. Tem muitos garimpeiros na nossa terra. Antigamente tinha água limpa, hoje está muito suja, os rios estão amarelos e já faz tempo que está assim. Estamos com muito medo do que pode acontecer, pois nossa terra está ruim”, relatam.
As mulheres Yanomami também são alvo de violências sexuais, com registros de casos de estupros, assédios e aliciamento de menores. “Quando o garimpo está próximo, nós mulheres ficamos muito preocupadas e andamos com muito medo. Os garimpeiros nos ameaçam e nós não queremos viver assim, queremos viver em paz. Os garimpeiros assediam as meninas e outros querem pagar serviços maritais. Eles querem fazer assim, mas nós mulheres não queremos que nossas filhas e netas sejam entregues e abusadas por essas pessoas”, afirmam.
Os abusos relatados por mulheres foram divulgados no relatório Yanomami Sob Ataque, lançado em abril com um diagnóstico sobre a Terra Indígena Yanomami no ano de 2021.
Encontro
No encontro, que aconteceu na Missão Catrimani e faz parte das celebrações dos 30 anos de demarcação da Terra Indígena Yanomami, 49 participantes de 15 comunidades discutiram ao longo de seis dias a participação feminina no movimento indígena, na política, na saúde e em pesquisas.
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Encontro de mulheres na Missão Catrimani fez parte das comemorações dos 30 anos da Terra Indígena Yanomami|Darisa Yanomami e Juruna Yanomami/HAY
O evento foi realizado pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) com apoio do Instituto Socioambiental (ISA) e da Diocese de Roraima.
No primeiro dia, as mulheres começaram a refletir sobre o papel feminino entre os Yanomami. Muitas delas relataram que suas filhas nasceram há 30 anos, com a demarcação do território e chegaram a um consenso: o protagonismo delas aumentou nas últimas três décadas.
“Durante os 30 anos de homologação, as mulheres Yanomami cresceram também como lideranças. Antes, no início da homologação, não tinha encontro das mulheres. Depois, com o tempo, surgiu”, disse a missionária da Diocese de Roraima Mary Agnes.
A ideia de criar encontros de mulheres Yanomami surgiu após algumas lideranças visitarem a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Lá, as mulheres Macuxi realizam eventos assim desde 1999. “As macuxi falaram: ‘façam também seus encontros’. Então pensei: essa palavra é boa, nós também podemos fazer. Eu não fui à toa na terra Macuxi”, disse a anfitriã do evento, Mariazinha Yanomami.
Desde então, os encontros de mulheres Yanomami têm sido espaços para discutir sobre a floresta, para dialogar entre comunidades diferentes e para comunicar problemas, como na saúde.
Comunicação, ciência e os espíritos mitológicos femininos
Apesar da falta de estrutura na saúde e da constante posição de defesa frente ao garimpo ilegal, as mulheres Yanomami também resistem com suas próprias produções. Elas atuam na comunicação fazendo filmes e em pesquisas científicas para entender o próprio ciclo menstrual e de onde vem o costume de produzir cestos.
Durante o primeiro dia de encontro, as Yanomami puderam assistir à prévia de um filme feito por três jovens comunicadoras sobre as típicas pinturas corporais. O material foi produzido durante uma oficina de cinema. Parte dos comunicadores Yanomami também fez as fotos do encontro de mulheres deste ano.
Com o fim da exibição do filme, as mulheres tiveram um pequeno intervalo para almoçar e refletir sobre as discussões iniciadas pela manhã. Seguindo com a programação, as Yanomami puderam falar sobre as próprias pesquisas.
A artista e pesquisadora Ehuana Yanomami investigou o ciclo menstrual das mulheres de seu povo. Ehuana também pesquisou sobre a cestaria, prática comum entre as mulheres Yanomami, e através de desenhos descobriu Mamoruna, um espírito feminino que ensinou a prática de cestaria às Yanomami.
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Angêla Yanomami e Ehuana Yanomami (à direita): artista e pesquisadora investigou o ciclo menstrual das mulheres de seu povo|Darisa Yanomami e Juruna Yanomami/HAY
“A princípio eu fiz pesquisa sobre menstruação, conversei com as moko, com as mais velhas. Essa pesquisa eu fiz com a ajuda de outra napë [não-indígena], a Ana Maria. A HAY [Hutukara Associação Yanomami] publicou num livro essa pesquisa, mas não foi traduzida. Como estava sozinha ainda não consegui traduzir, mas podemos traduzir agora. Eu fiz essa pesquisa porque queria saber como era antigamente a menstruação das mulheres”, contou Ehuana.
Com pesquisa, comunicação e os espíritos mitológicos femininos, as mulheres Yanomami começam a olhar para o futuro, pensando nos próximos 30 anos da Terra Indígena Yanomami. Como descrito na carta endereçada ao presidente eleito, os desafios urgentes estão em estruturar a saúde, oferecer educação e retirar os invasores do território para acabar com o garimpo ilegal.
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