Cerca de 80 participantes acompanharam o trajeto que as sementes fazem, desde a coleta até o plantio
*Originalmente publicado no site da Rede de Sementes do Xingu
Construir pontes com muvucas e diversidade: eis o que a Rede de Sementes do Xingu (ARSX) faz de melhor. Entre os dias 30 de outubro e 1 de novembro de 2023, a 4ª Expedição da Restauração Ecológica reforçou esta expertise da ARSX ao reunir cerca de 80 pessoas para acompanhar o caminho de suas sementes, desde a coleta até o plantio.
Ao longo de três dias, coletores de sementes indígenas, urbanos e da agricultura familiar, além de técnicos, pesquisadores, restauradores, apoiadores, financiadores e proprietários rurais estiveram juntos, conectando pontos da cadeia da restauração ecológica, visitando espaços institucionais e áreas restauradas em diversos arranjos, contextos e períodos entre os municípios de Nova Xavantina, Canarana e Querência, todos no estado de Mato Grosso.
A Expedição da Restauração Ecológica é um dos maiores e mais expressivos eventos da Rede de Sementes do Xingu (ARSX), organizada bienalmente em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
Assista ao vídeo da expedição:
Dia 1: A coleta de sementes e a restauração em um grupo misto de agricultores familiares e moradores urbanos
Cada semente tem um jeito de ser beneficiada. Mão, tesoura, quebrador de baru, facão e até carro: coletor é bicho curioso, caprichoso e criativo na hora de encontrar a melhor forma de tratar cada semente. Quanto mais complexo o beneficiamento, mais alto tende a ser o valor da semente.
"Uma das partes mais empolgantes e curiosas da coleta é o beneficiamento: não tem um jeito certo de beneficiar, mas tem que garantir a qualidade da semente. Os coletores estão sempre inovando, usando de sua criatividade e das ferramentas que tiverem para facilitar o processo", explica Milene Alves, coletora de sementes desde 2013 e bióloga do Redário, uma rede de redes de sementes espalhadas pelo Brasil e coordenada pelo ISA.
"Meu pai diz e é verdade: a semente te ensina a trabalhar com ela. O tamanho, a dureza e o tipo da semente te indicam como fazer o beneficiamento. Não é à toa que a maior parte das coletoras é mulher: este é um trabalho muito cuidadoso, que elas fazem com excelência", completa.
Milene é portadora de uma história interessante e bonita, que revela o poder de transformação que a semente carrega não só para a restauração de ecossistemas, mas para a restauração da vida, da saúde e das relações. Além dela, a mãe, o pai e o marido também são coletores.
"Depois que entramos na Rede, nossa vida mudou. Eu entrei na faculdade, me tornei mestre em Agroecologia e hoje tenho minha família, minha casa e meu carro. Minha mãe era trabalhadora doméstica e sofria com depressão e ansiedade. Trabalhar com a semente deu um novo sentido à vida dela", relata Milene.
As Casas de Sementes e o Laboratório de Sementes da UNEMAT
Uma vez coletadas, as sementes são armazenadas em uma das três Casas de Sementes da ARSX. Em um ambiente controlado, seco, fresco e escuro, a armazenagem segue protocolos: "As sementes são pesadas e conferidas, incluindo tipo, beneficiamento e qualidade", explica Denise Costa, guardiã da Casa de Sementes de Nova Xavantina.
É também nas Casas de Sementes onde são separados lotes para controle no Laboratório de Sementes da UNEMAT, no campus de Nova Xavantina. "Nosso papel é avaliar a qualidade fisiológica e física de algumas sementes da Rede. Analisamos o teor de pureza e de água e fazemos o teste de germinação e de emergência em canteiros de areia", explica Rodrigo de Góes, coordenador do Laboratório.
Ao lado dele, a professora Luciane Roswalka se dedica à Fitopatologia. "Na muvuca, se as sementes estiverem contaminadas por patógenos [doenças], elas podem não se desenvolver. Por isso, buscamos agentes biológicos que possam atuar no controle desses patógenos, como a própria microbiota do solo", afirma Luciane.
Cumprida esta etapa, na época das chuvas, as sementes vão para as áreas de restauração, onde a magia acontece: a muvuca de sementes é feita e semeada! Curioso notar a circularidade desse trajeto: a semente vem do chão e retorna para ele. Entre uma ponta e outra do caminho, há toda uma travessia, aberta e sustentada por muitas mãos.
Crise é oportunidade: a restauração nos territórios de coleta
Apesar do grande passivo ambiental das propriedades rurais brasileiras, a pouca demanda por sementes tem incentivado uma solução próspera para a Rede de Sementes do Xingu: plantar nos territórios de coleta!
A partir de projetos e programas de apoio, a ARSX tem se dedicado cada vez mais à restauração ecológica nos territórios em que atua no intuito de aproximar as árvores matrizes das comunidades, promover a segurança e a soberania alimentar nos territórios e fortalecer sua biodiversidade e recursos hídricos.
"A maior parte dessas áreas está dentro de assentamentos da agricultura familiar e de aldeias indígenas. Nesses locais, planejamos a restauração junto com as comunidades, levando em consideração o que é de interesse delas, olhando sempre para o bem-viver e a permanência na terra", explica Bruna Ferreira, diretora da Rede de Sementes do Xingu.
Assim, o primeiro dia da 4ª Expedição contou com uma visita a uma área de restauração no Projeto de Assentamento (PA) Pé da Serra, no sítio dos coletores e agricultores familiares Mariozan Ferreira e Maria Ângela. Ali, a restauração foi feita em 2021 como uma homenagem a Heber Queiroz, ex-coordenador do componente de Adequação Ambiental do ISA, falecido durante a pandemia da Covid-19.
"Sou coletor da Rede desde quando eu vim para o sítio, há 12 anos, e minha renda principal é a semente. Nossa área está muito bonita, acho que pelo grande carinho que todos tínhamos com Heber. Meus filhos já foram pra cidade, mas eu e minha esposa seguimos por aqui", conta Mariozan.
Simulando a natureza e trabalhando com ela: a ciência por trás da muvuca de sementes
A muvuca é uma simulação do que a própria natureza faz, só que de forma acelerada. Enquanto um processo de regeneração natural pode levar cerca de 200 a 300 anos para acontecer, a muvuca de sementes reúne plantas com diferentes funções biológicas e ciclos de vida em um único plantio estrategicamente pensado.
"Há uma ciência por trás da diversidade de espécies e quantidade de sementes escolhidas em uma muvuca, que vem se aperfeiçoando ao longo dos anos, a partir da experiência", afirma Guilherme Pompiano, do ISA.
Guilherme explica que as espécies vegetais previstas na muvuca estão separadas conforme o extrato e o ciclo de vida para simular o processo de sucessão que a própria natureza faz: primeiro, nascem as espécies pioneiras, que vivem até um ano e desempenham o papel de adubação verde, impedindo o alastramento do capim, fertilizando e fortalecendo o solo.
Depois, as pioneiras morrem e deixam o espaço preparado para as secundárias, cujo ciclo de vida se estende até 20 anos. Só então teremos as espécies tardias (de 20 a 100 anos) e as clímax (acima de 100 anos), que serão a floresta do futuro.
Danielle Celentano, do ISA, complementa: "Um dos mecanismos de regeneração natural é o banco de sementes do solo, que é enriquecido quando implantamos uma muvuca. Em um plantio, plantamos muitas sementes porque poucas de fato vivem e se estabelecem. A natureza é assim".
Dia 2: a Aldeia Ripá e a restauração ecológica no contexto indígena
O segundo dia da Expedição foi todo dedicado à aldeia Ripá, do povo Xavante. Fundada em 2012 pelo cacique José Guimarães Sumené Xavante, a aldeia conta com um grupo coletor formado por 26 mulheres e é referência no trabalho de coleta de sementes.
Lá, graças à boa consideração do cacique José Sumené com a Rede de Sementes do Xingu, os participantes da 4ª Expedição da Restauração Ecológica tiveram a honra de conhecer um dos pontos sagrados do aldeia: um poço de águas limpas e azuis, que alegrou os waradzu – palavra Xavante para não-indígena –, habituados a ritmos, tempos e confortos tão outros.
A recepção contou também com cantos e rodas de conversa para apresentações, informes e partilhas sobre a coleta de sementes. Visitaram-se, ainda, duas áreas restauradas com muvuca: a primeira, semeada em 2019, já exibe seus barus, cajus e mamoninhas, indicando a chegada das plantas secundárias e tardias no sistema. A segunda, fruto de uma semeadura direta realizada em 2022, ainda dá seus primeiros passos rumo ao estabelecimento da sonhada floresta do futuro.
À noite, a lua se engrandece ao chegar no horizonte do céu. O centro da aldeia, ainda há pouco aquecido pelo fogo Xavante feito em festa para os visitantes, ecoa frescor e silêncio: alívio. Corpos cansados descansam. O dia quente e a caminhada matinal pela mata, aberta e liderada pelas coletoras de sementes da comunidade, permitem que todos durmam melhor.
O tempo na aldeia é diferente – e parte do cansaço talvez venha da tentativa de controlar um sol determinado a aquecer o chão vermelho da Terra Indígena Pimentel Barbosa. Lado a lado, cada qual em sua rede, cerca de 80 waradzu participantes da Expedição dormem nas poucas horas que antecedem o amanhecer.
Dia 3: a restauração ecológica em grandes propriedades rurais
O Mato Grosso, assim como o Brasil, é uma terra de contrastes. Um deles são os modos de ocupação da terra. Da Terra Indígena Pimentel Barbosa, partimos rumo a duas grandes fazendas que são referências de produção agrícola e restauração no estado: a Fazenda Schneider, onde há duas áreas de restauração em estágio avançado, com cerca de 15 anos de idade, e a Fazenda Tanguro, do Grupo Amaggi, onde áreas de restauração com muvuca vêm sendo crescentemente implantadas.
"O Mato Grosso é um território em disputa. Os fazendeiros são poderosos porque mantêm a balança comercial do Brasil positiva, mas dependem de conhecimentos de comunidades locais, de agricultores, assentados e povos indígenas, que são quem sabem de sementes. Esse conhecimento é muito sofisticado e poderoso, capaz de promover a convivência entre grupos que até pouco tempo estavam em uma guerra aberta – se não continua. A Rede de Sementes do Xingu construiu pontes – das poucas que a gente tem, de mundos que se entendem excludentes", afirma Biviany Rojas, coordenadora do Programa Xingu/ISA.
Fundada em 1988 por uma família do Rio Grande do Sul, a Fazenda Schneider é referência no plantio de soja, algodão e milho no estado de Mato Grosso. Com uma área total de 3000 ha e uma área produtiva de 2150 ha, a propriedade se tornou um case de sucesso pelo bom estabelecimento de uma área restaurada entre os anos de 2009 e 2010. Hoje, caminha-se com a sensação de realmente estar em uma mata.
Além disso, a restauração na propriedade conta com outra particularidade de destaque: o balanço de carbono. Graças a um projeto feito com a Natura, a restauração na Fazenda Schneider monitora a taxa de absorção de carbono, que tem surpreendido os técnicos envolvidos com este plantio.
"Na segunda medição, de 10 anos, o projeto absorveu quatro vezes mais carbono do que previsto. Este é um carbono premium. A nossa expectativa é compartilhar essa história para que outras pessoas não cometam os mesmos erros que nós e aprendam a partir da nossa experiência", conta Rodrigo Junqueira, atual secretário geral do ISA, que acompanhou os primeiros plantios.
"Hoje, ainda temos espécies germinando e se estabelecendo. O solo e o clima dessa área são totalmente diferentes, com uma cobertura de matéria orgânica dentro da floresta, pássaros e animais. Se todo mundo fizer sua parte, o ambiente vai andar em paralelo com a agricultura", afirma Valmir Schneider, proprietário da Fazenda Schneider.
A muvuca de sementes na Fazenda Tanguro
O ponto final de nossa Expedição foi a Fazenda Tanguro, da Amaggi, em Querência/MT. Com cerca de 87 mil hectares de extensão, a Fazenda Tanguro se dedica à soja, ao algodão e ao milho ao mesmo tempo em que mantém mais de 50% de sua área como reserva legal. Foi lá onde fizemos nossa muvuca, semeada em uma Área de Proteção Permanente (APP), cuja restauração prevê uma área total de 35 ha.
“Estamos trabalhando duas áreas de um mesmo fragmento com 17,5ha de cada lado. Será um experimento interessante: a área foi toda preparada da mesma forma, mas metade dela vai receber muvuca de sementes e a outra metade será destinada à regeneração natural para, no futuro, compararmos os resultados", explica Paulo Mariotti, analista socioambiental da Fazenda Tanguro.
"Viemos de um processo de restauração em um modelo mais tradicional, com plantio de mudas, e encontramos dificuldades como o controle de formigas, o plantio manual das mudas e a obtenção delas. Experimentamos a muvuca de sementes em 2020 e os resultados foram bastante positivos – tanto em termos de germinação de sementes, quanto econômicos. Agora, trabalhamos quase exclusivamente só com essa técnica", completa Paulo.
Não faltam sementes: falta demanda!
Um dos argumentos da restauração ecológica por meio da muvuca de sementes é a falta de sementes. E isso não é verdade. A Rede de Sementes do Xingu tem capacidade de coletar até 30t de sementes por ano, através de um trabalho coletivo que reúne seis etnias indígenas – sendo cinco delas na Terra Indígena do Xingu (TIX) –, mais de 20 assentamentos da reforma agrária e coletores urbanos de três municípios em Mato Grosso.
"Somos a maior iniciativa do tipo no Brasil. Fazemos, ainda, parte do Redário, uma rede de redes de sementes coordenada pelo Instituto Socioambiental (ISA), que inclui outros 24 projetos como o nosso, capazes de coletar e distribuir sementes de todos os biomas do Brasil. A disponibilidade de sementes não é mais um gargalo para restauração com muvuca”, afirma Bruna Ferreira, diretora da Rede de Sementes do Xingu.
"O ponto de não retorno está mostrando que não basta só parar de desmatar: temos que plantar. A restauração pode contribuir com o clima, com a diminuição da desigualdade e com a diversidade do Brasil. A coleta de sementes é capaz de complementar a renda e restaurar relações, principalmente em um mundo tão polarizado. A semente tem o poder de conectar mundos e trajetórias muito diferentes", lembra Rodrigo Junqueira, do ISA.
Ao longo de seus 16 anos de atuação, a Rede de Sementes do Xingu já comercializou mais de 330 t de sementes de 220 espécies diferentes, contribuindo para a restauração de mais de 8 mil hectares de área. Por um lado, é pouco, se temos em vista o passivo ambiental brasileiro. Por outro, é muito, visto que essa semeadura não germina apenas floresta: além da renda de mais de R$ 6,125 milhões gerada aos coletores de semente, a Rede semeia também afeto e cuidado entre gentes, bichos e plantas, promovendo uma restauração ecológica que fortalece as bases e o território de quem vive no campo.
"Pra mim, a maior importância de coletar semente é saber que um dia ela vai ser plantada em algum lugar. Tenho orgulho de fazer um trabalho tão bonito – coletar semente, sabendo que ela tá fazendo um bem enorme para o planeta. O que a gente faz com amor e com carinho nunca é em vão", conclui Cleusa Nunes de Paula, coletora e elo da Rede de Sementes do Xingu desde 2010.