Com foco na qualidade e na diversidade das sementes nativas, evento fortaleceu trocas unindo ciência, tradição e restauração ecológica

Com câmeras a postos e olhares atentos, comunicadores indígenas da Rede Xingu+, Anaya Suya, Are Yudja, Kujaesage Kaiabi, Yamony Yawalapiti e Kamatxi Ikpeng, estão prontos para registrar um momento histórico em Nova Xavantina, Mato Grosso, geo-centro do Brasil.
Durante o 4º Encontro do Redário — uma articulação composta por 27 redes e grupos coletores de sementes de todo o Brasil —, seus olhares registraram histórias e saberes que revelam o papel central de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, assentados e agricultores familiares na conservação da biodiversidade e na restauração. Por meio de suas narrativas, traduziram a luta pela conservação das sementes nativas, a conexão profunda com a terra e o compromisso com um futuro sustentável para todas as gerações.

A força coletiva que sustenta a restauração é também a que dá sentido e vigor para o Redário, criado em 2022. Apesar da pouca idade, a cada encontro a articulação se expande em diferentes biomas e mobiliza mais de 2.500 pessoas na produção de sementes de espécies nativas para a cadeia de restauração ecológica.
Durante quatro dias, 150 representantes de redes de coletores dos biomas Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga e Pantanal orbitaram em torno do tema “qualidade de sementes”, mas não só. Precificação, técnicas de beneficiamento, aspectos sociais e psicológicos da atividade também tiveram espaço nas conversas, assim como o compartilhamento de experiências pessoais e celebrações de conquistas a partir desse trabalho cheio de propósito.
De acordo com Eduardo Malta, biólogo e coordenador do Redário, a articulação surgiu da necessidade de reunir várias redes sob uma governança colaborativa que valorizasse o protagonismo e facilitasse os trâmites da restauração, com troca de conhecimentos e colaboração.
“Nesse quarto encontro, consigo sentir que existe um senso de pertencimento à iniciativa — que quem está em outra rede de sementes também está no meu time, sabe? E também está começando a funcionar em rede, no sentido de que um pode acessar diretamente o outro, sem precisar passar pela centralidade. Essas pontes diretas estão bem consolidadas, e temos essa rede de capacitação, com metodologias e materiais didáticos que funcionam para as realidades enfrentadas pelas redes”, celebrou.
“O maior desafio”, continua, “é conseguir organizar e acessar a demanda existente no mercado por sementes, e conectar essa demanda ao que as redes podem produzir. Isso exige um grande esforço para entender o que as empresas querem restaurar, quais são as obrigações dos fazendeiros e das ONGs, e transformar tudo isso em pedidos para as redes.”
Para Bruna Daiana Ferreira de Souza, bióloga natural de Nova Xavantina e atual coordenadora da Rede de Sementes do Xingu - que, com 18 anos de história, abriga hoje mais de 700 coletores -, foi gratificante receber os representantes no local de nascimento da primeira rede a compor o Redário.
“É sempre uma alegria ver as pessoas que a gente já conhecia, mais as que estão chegando, e pensar que a nossa turma está aumentando, que a gente tá ganhando voz, ecoando aí nos outros biomas”, disse.
A Rede Flor do Cerrado, do Mato Grosso do Sul, com atuação em quatro cidades e 86 coletores ativos em comunidades quilombolas e de assentamento, a maioria mulheres, foi uma das 7 redes de coletores em fase articulação presentes no encontro. Samanda Nakamura, bióloga e ponto focal da rede, exalta a integração ao Redário e explica que conseguiu esclarecer dúvidas ao longo do encontro, por exemplo, sobre o potencial de coleta e beneficiamento de sementes.
“Uma coisa que a gente perdia muito, e por isso parou de pedir para os coletores, era buriti, porque comprávamos, mas às vezes não tinha saída e acabava se perdendo. Aqui falaram que eles guardam o buriti dentro de uma rede, no rio, e que pode durar até um ano. Então, já estou aprendendo muito. São coisas que, saindo daqui, já vou levar para rodar dentro dos nossos grupos.”
Mato Grosso e as possibilidades de fazer diferente
Mato Grosso é o estado onde a visão do progresso pela destruição da biodiversidade se espalhou com sucesso. Sob altas temperaturas, Bruna explica que o local conta com cultivo intensivo de soja, milho, algodão e gergelim. Essa forma de ver a vida é muitas vezes justificada como geradora de renda para a população, o que Bruna não nega, mas reforça que o trabalho da Rede de Sementes mostra que é possível fazer diferente, com mais respeito pelo meio ambiente e pelas pessoas.
“A gente trabalha com um tema que é muito discrepante da monocultura, né? Quando vieram os primeiros colonos para a nossa região, a lei era chegar e derrubar tudo para poder ficar naquela terra. Trabalhar com a floresta em pé é, para a maioria da população, um retrocesso, como se a gente estivesse nadando contra o progresso. Mas mostramos que é, sim, uma alternativa forte de renda para as comunidades e que gera permanência na terra.”
Quem também vive uma realidade parecida é Sandra Vicentini, representante da Mutum Sementes e presidente da COOPPROJIRAU - Cooperativa dos Produtores Rurais do Observatório de Jirau -, no município de Porto Velho, Rondônia. O boom da soja no estado faz com que o trabalho dos 60 coletores pareça contraditório. Ela, que vem de uma família que chegou à região para explorar madeira, tem orgulho de dizer que reflorestou muito mais do que seu pai e tios devastaram. Estreante no encontro, voltou para casa feliz e reenergizada.
“A gente leva na bagagem muito conhecimento, tanto o que trocamos quanto o que ouvimos, né? Que isso se perpetue, que a gente consiga envolver mais pessoas nessa coisa do bem. Todos nós aqui estamos indo contra a maré. Então, estamos unidos”, ressaltou.
Antônio Borges Barreto, conhecido como Sinhozinho de Santarém, nordestino orgulhoso de Casa Nova, na Bahia, é coletor e criador de abelhas. Em suas falas, denuncia a atuação de grandes empresas que desmatam para plantar monoculturas de manga, uva e goiaba, fragilizando ainda mais a Caatinga, bioma que mobiliza sua paixão.
“A Caatinga tá indo embora. E depois que ela for, você não vai achar mais, porque só tem no Nordeste. Não adianta procurar no Sul, Sudeste, Centro-Oeste ou em outro lugar do planeta chamado Terra. Só tem no Brasil e só tem no Semiárido.”
As consequências são visíveis a olho nu. “Tenho 75 anos e, de uns 10 anos para cá, vi muita coisa mudar. Ou o céu abaixou, ou a terra subiu, porque nunca vi tanto calor. E também a chuva… Antes, chovia controlado; agora, você vê o desvio, quando cai. E quem acabou com tudo isso foi o homem. Quer dizer, ele tá pagando pelo que fez”, lamentou.
Incentivo fiscais em falta
Os desafios também se estendem à esfera pública. A falta de incentivo e as regras que batem nos pequenos coletores não batem nos grandes fazendeiros. Mas Bruna ressalta que ver os relatórios do Redário e entender que o trabalho é recompensador não só para ela e sua família, mas para a humanidade, dá ânimo para continuar.
“É importante para mim, é importante para os meus filhos, vai ser importante para os meus netos, porque todos os dias você tem motivo para desistir. Todos os dias você tem uma notícia de um desmatamento gigantesco, maior do que tudo que a gente fez em quase 18 anos, né? Todos os dias, você vê notícias do avanço do agronegócio, de forma desenfreada, com uso indiscriminado de agrotóxicos. Isso é muito forte na nossa região. Politicamente, as redes de sementes do Brasil inteiro têm pouquíssimos incentivos fiscais, enquanto as grandes monoculturas têm”, desabafa. “Acho que encontros como este são fundamentais para vermos que há gente nessa luta em todo o Brasil.”
Um desses lugares é a Aldeia Laranjal, que fica na Terra Indígena Arara no Pará, onde vive Tjibetjan Arara. Lá, algumas famílias trabalham com a coleta de sementes, e ela compartilha que o evento foi importante para aprender como expandir o serviço. “Nunca imaginei que essa semente passasse por todo esse processo. Isso é muito importante para nós lá. Queremos mais conhecimento também. Eu vou para a aldeia e vou repassar para minha comunidade”, disse.
A semente que restaura, cura e realiza sonhos
Além do aspecto financeiro, ao longo do encontro coletoras e coletores compartilharam como o trabalho com sementes promoveu mudanças de vida, inclusive com propriedades terapêuticas.
Edianilha Pereira Ribas, mais conhecida como Nina, é coletora de sementes nativas e agricultora familiar em Alto do Rio Pardo, no Norte de Minas Gerais, região de transição entre Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga. Ela compartilhou sua trajetória de retomada da identidade cultural e da consciência sobre a conservação do território a partir da coleta de sementes.
“Eu tinha ido para Belo Horizonte logo após o ensino médio e fiquei cinco anos. Quando voltei, minha mãe me recebeu, e eu já tinha perdido parte da minha essência. Foi uma maneira de me encontrar”, explicou.

Sua mãe a levou para atividades de um coletivo, onde teve contato com comunicação popular e coleta de sementes. Para ela, além do aspecto pessoal, ser coletora impulsiona o respeito pelos mais velhos. Em seu território, ela e outros 54 cooperados, 40 deles são mulheres, dependem dos mateiros para aprender sobre a história da região, identificar espécies e localizar matrizes que fornecem sementes.
“A gente tinha que perguntar aos anciãos, os mais velhos, os mateiros da época. Perguntávamos onde havia determinada semente, em qual época. E assim fomos adquirindo conhecimento. Para muitos, aquilo era serviço de doido. Mas teve um resultado muito positivo na comunidade.”
Nina faz questão de reforçar que o trabalho vai além do retorno financeiro. “Ser coletora tem um objetivo, não é só coletar para vender. Você precisa entender o que está fazendo. É um papel muito importante, e você precisa respeitar a natureza. Não é só chegar numa matriz e pegar tudo. Tem que deixar uma parte para ela [natureza] também.”
Emilverto de Souza Fernandes, conhecido como Ni, é quilombola Kalunga do município de Cavalcante (GO), e trabalha com a Associação Cerrado de Pé. Ele contou que, antes, fazia trabalhos temporários, mas foi só com as sementes que conseguiu construir sua casa e inspirar outros. O grupo começou em 2018 com cinco pessoas, e hoje envolve 240 famílias e com lista de espera.
“Represento cerca de 60% desses coletores. Também sou responsável pela mobilização — vou até a casa do coletor, verifico se a semente está conforme o combinado. Antes eu não tinha esse olhar. Às vezes o coletor me diz: ‘Comprei isso, comprei uma geladeira, um freezer...’. Nossa região é distante da cidade, então isso já é uma conquista, a realização de um sonho”, comemora.

Segundo ele, essas trocas fortalecem o trabalho. “Estamos há sete anos, e a Rede de Sementes do Xingu tem 17. Não temos nem a metade. Mas digo a eles para não esmorecerem, que estamos no caminho certo também.”
Michele Anitta, da Rede de Coletores do Vale do Paraíba (Coopere), em São Paulo, coleta com outras 15 pessoas há três anos. Ela conta que, no início do ano, o Assentamento Olga Benário, onde vive, foi atacado. O foco agora é aumentar a disponibilidade de sementes no próprio assentamento, para que não precisem coletar em outras propriedades ou buscar trabalhos temporários fora.
“A gente está mais focado na semente, porque consegue trabalhar lá dentro, com a família, e continuar a vida. Estamos buscando alternativas para amenizar tudo o que passamos, e ainda estamos passando. Pensamos em aumentar a coleta para não parar. Muitos achavam que não conseguiríamos fazer mais nada. Eu mesma pensei nisso. Mas, graças a Deus, estamos nos recuperando aos poucos.”
Thiago Ribeiro Coutinho, também da Rede de Coletores do Vale do Paraíba, reforça que a colaboração é o caminho. Conta que os movimentos coletivos de coleta e restauração também servem para criar e fortalecer vínculos.
“Uma das nossas propostas é fazer a restauração nas áreas das próprias comunidades, com plantios locais. Assim, futuramente, teremos mais oferta de espécies e volume dentro dos próprios territórios, sem precisar buscar em áreas de terceiros.”
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A ciência e a valorização do conhecimento tradicional
A ciência é uma aliada fundamental na cadeia da restauração. Juliana Muller Freire, bióloga e pesquisadora da Embrapa Agrobiologia, afirmou que, para ela, estudar a qualidade da semente e disseminar informações sobre o manejo após a coleta é de extrema importância em tempos de mudanças climáticas tão acentuadas.
Juliana deu o exemplo das castanheiras, na Amazônia, que não produziram safras neste ano. “Está caríssimo o quilo da semente. Foi a seca que houve no ano passado. Então, na pesquisa, por exemplo, ao desenvolver um protocolo de armazenamento, você não fica dependendo só daquele período em que a semente está sendo coletada. Você pode coletar e armazená-la por três anos. De repente, no próximo ano vai haver um problema climático, mas você tem aquela semente ali. Você pode garantir que aquele lote vai estar viável e poderá ser comercializado ainda com qualidade. Então, acho que essa é uma forma da gente interferir, de alguma maneira”, explicou.
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Para Freire, esse movimento do Redário de falar também sobre a metodologia, da padronização de protocolos de análise de sementes em laboratório e de explicar o que está por trás dessas análises é importante para fazer esse conhecimento chegar na ponta com sentido e incentivar os coletores a pensarem também nessa instância mais técnica.
“A gente pode desenvolver essa pesquisa, mas vamos, de repente, fazer um manual, uma orientação, e essas reuniões constantes que vocês fazem com eles, né? E o contrário também, né? Eles também induzem pesquisa e demandam para a gente pesquisar determinadas espécies que a gente não estava pensando. Porque, às vezes, a academia tem um vício de ficar pesquisando sempre a mesma coisa.”
Eduardo Malta concorda: “A gente fica muito nesse papel da tradução. Poder traduzir o que um artigo científico concluiu, o que é uma recomendação, uma dica para quem está lá coletando, é bem difícil. São duas linguagens e dois universos com valores muito diferentes, que têm sido difíceis de conectar. Mas esses eventos são uma oportunidade para isso. Os pesquisadores, quando se entendem, sentem a emoção, entendem o negócio, eles se sensibilizam. E aí podem ajudar a gente a se conectar com outros pesquisadores.”
“Você faz coisas e se depara com o fato de que é um cientista, um pesquisador. Que a cada ano que faz, a cada experiência que realiza sobre maneiras de coletar, de beneficiar, está fazendo o papel de pesquisador”, disse Nina.
Resultados
O Redário tem uma governança que estimula a participação coletiva. Por meio do Conselho das Redes e do Comitê Gestor, trabalha em prol do fortalecimento de redes e núcleos coletores, facilita o acesso ao mercado e a recursos e estimula a cooperação entre os atores do ecossistema, ou seja, a produção, a ciência, o poder público e iniciativas de financiamento.


Com encontros online, intercâmbios, compartilhamento de guias e banco de dados, além de sessões para tirar dúvidas e vídeos informativos, as boas práticas são disseminadas com o objetivo de aumentar o impacto do trabalho dessas mais de 2.500 pessoas. Todo esse esforço resultou em R$7.980.035,02 em sementes vendidas em 2024 pelas redes, que, conforme estimativas, contribuíram para a restauração de mais de 4 mil hectares.
Malta celebra: “Eu fico contente também de ver muitos jovens participando, representando redes, e mulheres que são lideranças, presidentes e mobilizadoras das suas redes. Eu fico muito feliz e confiante no futuro por conta dessa composição.”
Ao final de quatro dias intensos, voltamos para nossas cidades mais atentos ao entorno, em busca de germinar a esperança numa eterna espiral, com a consciência de que o cenário é, sim, muito difícil e pode nos paralisar. Mas temos que entender que todos podemos e devemos ser agentes das soluções que todos precisamos. Sonhar com um futuro melhor, onde volte a existir vida em toda sua diversidade é semente de potência.