Lideranças Kayapó e Ye’kwana denunciaram em Genebra, na Suíça, os impactos da atividade ilegal em seus territórios e na saúde das populações
A Aliança em Defesa dos Territórios, composta pelos povos Kayapó, Yanomami e Munduruku, realizou, no dia 10 de julho, um evento paralelo na sede da ONU em Genebra sobre os impactos do garimpo ilegal de ouro na Amazônia brasileira.
O objetivo foi promover um diálogo entre as lideranças presentes – Julio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye'kwana (Seedume) e Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu –, órgãos da ONU, o governo brasileiro e a sociedade civil.
A mesa, que foi co-organizada pela Rede de Cooperação Amazônica (RCA) com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), Greenpeace, Instituto Iepé, Rainforest Foundation Norway e Instituto Raça e Igualdade, integrou a programação oficial de eventos paralelos da 17ª sessão do Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP) da ONU.
O evento fez parte de uma ampla agenda de incidência política da Aliança em Genebra para provocar o governo brasileiro a agir de forma mais efetiva no combate ao garimpo ilegal do ouro no país. Nos dias 8 e 9 de julho, as duas lideranças presentes em Genebra discursaram na plenária principal do EMRIP.
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“É importante a gente falar na ONU para que conheçam internacionalmente a nossa luta”, ressaltou Julio Ye’kwana. Ao longo da semana, as lideranças reiteraram que, apesar de o governo federal ter mudado, a correlação de forças no poder, principalmente no Legislativo, ainda os desfavorece e impede que as ações de proteção aos seus territórios avance.
Em suas falas, os dois representantes da Aliança ressaltaram o papel dos povos indígenas na proteção da natureza e na mitigação das mudanças climáticas: “Nós protegemos a floresta, nós protegemos o mundo. E fazemos isso para continuarmos vivendo”, sublinhou Julio Ye’kwana.
“Hoje sofremos com o garimpo e com a contaminação dos nossos rios, dos nossos peixes. O ouro é sagrado, ele tem que ficar no subsolo, não é para retirar de lá. Queremos continuar a beleza que temos em nossas florestas. Que os espíritos da floresta continuem protegendo a nossa vida e os povos indígenas protegendo as florestas, como sempre fizemos”, continuou o presidente da SEDUUME.
“Não somos nós, povos indígenas, que estamos desmatando: são os próprios brancos que estão querendo acabar com o mundo”, acrescentou Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu.
Assista às falas completas das lideranças em Genebra:
Convenção de Minamata e povos indígenas
Também compuseram a mesa palestrantes engajados com os direitos dos povos indígenas dentro do sistema das Nações Unidas. Todd Howland, representante do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), abriu o evento fazendo referência à crítica situação em Minamata, no Japão.
Na década de 1950, resíduos industriais com alta concentração de mercúrio foram despejados na baía de Minamata, no Japão, contaminando mais de 50 mil pessoas, das quais ao menos duas mil desenvolveram o que veio a ser conhecida como a doença de Minamata. A Fiocruz demonstrou que crianças dos povos Munduruku e Yanomami já apresentam sintomas dessa doença em pesquisas realizadas em 2020 e 2024, respectivamente.
A doença de Minamata causa danos neurológicos e pode ter, entre seus sintomas, descoordenação e fraqueza musculares, paralisia, perda da audição e da fala. Em casos mais graves, pode levar à malformação fetal e à morte.
No garimpo, o mercúrio é usado para separar o ouro de outros materiais. Os resíduos da substância são incorporados na cadeia alimentar local e acabam contaminando quem se alimenta dos peixes, por exemplo, em especial comunidades indígenas e ribeirinhas.
Em 2023, 148 países – incluindo o Brasil – assinaram a Convenção de Minamata sobre o Mercúrio da ONU, assumindo obrigações para reduzir o efeito negativo do uso do mercúrio na biodiversidade e na saúde dos povos indígenas. Howland chamou atenção para o fato de que empresas e compradores de ouro estão impondo violações aos direitos humanos dos povos indígenas e propôs a eliminação total do uso de mercúrio, a garantia do direito à consulta prévia dos povos indígenas, o acesso à informação, incluindo dados sobre contaminação, e a proteção do direito à saúde das populações afetadas. “A saúde e a proteção da vida são uma obrigação de todos”, lembrou.
Manoela Pessoa, do Secretariado da Convenção de Minamata, afirmou que o mercúrio é um produto barato e fácil de se comprar, inclusive pode ser encontrado na internet. No Brasil, sua comercialização é regulada, mas continua sendo contrabandeado em larga escala. Para Pessoa, é urgente a retirada dos garimpeiros das Terras Indígenas, o monitoramento contínuo das pessoas contaminadas o combate ao comércio ilegal do mercúrio e do ouro.
Por fim, Luis Donisete Grupioni, secretário-executivo da RCA e do Instituto Iepé, afirmou que o garimpo ilegal de ouro na Amazônia é hoje uma atividade permeada por uma rede de ilícitos: “O garimpo está intimamente associado ao tráfico de mercúrio, drogas e armas; é uma atividade complexa, que envolve infraestrutura de equipamentos, recursos financeiros e associação criminosa de empresas suspeitas de fraude na compra e venda de ouro”.
Grupioni lembrou que o avanço da atividade sobre as Terras Indígenas também ameaça os últimos povos indígenas em isolamento voluntário na Amazônia.
Recomendações ao governo brasileiro
Todas as falas convergiram ao menos em quatro recomendações urgentes ao governo brasileiro:
- - Desintrusão completa e permanente de todos os territórios indígenas invadidos;
- - Monitoramento e tratamento das pessoas contaminadas por mercúrio;
- - Regulamentação da cadeia do ouro no Brasil, com a criação de mecanismos de rastreabilidade da origem;
- - Controle do uso do mercúrio.
A Aliança reuniu-se ao longo da semana com diferentes mecanismos e procedimentos da ONU, entre eles, a responsável pelo Brasil no ACNUDH e as assessorias dos Relatores Especiais sobre Discriminação Racial e sobre Empresas e Direitos Humanos, com o objetivo de informar sobre as violações aos direitos humanos causadas pelo garimpo ilegal na Amazônia.
A denúncia de Julio Ye'kwana, na plenária principal da sessão do EMRIP, no dia 9 de julho, chamou atenção da vice-presidente do EMRIP, a norte-americana Dalee Sambo Dorough, e do relator especial sobre Direitos dos Povos Indígenas, Francisco Calí Tzay,que convocaram o governo brasileiro a agir imediatamente na situação da Terra Indígena Yanomami.
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A perita do EMRIP pela América Latina, Anexa Brendalee Cunningham, que também compôs a mesa do evento paralelo com a Aliança no dia 10 de julho, afirmou que os povos indígenas estão numa luta constante por seu direito à terra no Brasil e em outros países do mundo. E que é importante que haja um diálogo com o governo para encaminhar soluções para os problemas dos direitos coletivos dos povos indígenas em seus territórios, como a questão da invasão do garimpo.
Ela sugeriu que as lideranças indígenas solicitem uma visita do Mecanismo de Peritos em Direitos Indígenas do Conselho de Direitos Humanos da ONU ao Brasil. Desta forma, o Mecanismo pode elaborar um estudo detalhado sobre as violações dos direitos dos povos indígenas no país e cobrar respostas do governo.
Convidada, a Missão Permanente do Brasil junto à ONU não compareceu ao evento paralelo da aliança. “Foi uma pena que os representantes do Itamaraty em Genebra não tenham comparecido ao evento, embora tenham sido convidados. Encontraremos outras formas de levar essas recomendações ao governo brasileiro, e vamos insistir na importância do diálogo com a sociedade civil”, comentou Luis Donisete Grupioni.
* Luis Donisete Grupioni e Marina Vieira