Áreas afetadas por incêndios tornam-se menos úmidas e nascentes devem produzir menos água que chegaria aos rios nos próximos anos
Áreas de florestas e serras em Roraima estão sendo afetadas por megaincêndios - fogo de grandes proporções, com larga quilometragem e com impactos econômicos, ambientais e sociais, incluindo a saúde pública. A situação pode ser considerada um desastre ambiental em andamento e suas consequências podem alterar ecossistemas no estado com florestas úmidas tornando-se cada vez mais secas e prejudicando até a sobrevivência da fauna.
Conforme Haron Xaud, doutor em sensoriamento remoto e pesquisador na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e professor da Pós-graduação em Recursos Naturais da UFRR, à medida que as áreas são repetidamente afetadas por incêndios, elas se degradam e podem afetar até mesmo nascentes de água de Roraima.
Xaud explica que os serviços ambientais ficam cada vez mais negativamente impactados: biodiversidade, proteção do solo, geração de água etc. “As serras de Roraima, principalmente as de cobertura vegetal florestal, têm muitas nascentes de água que dependem da vegetação estar saudável e conservada. Se você tem uma intensa mudança degenerativa na vegetação, para uma mesma quantidade de chuva que caia, você vai ter mudanças na capacidade de captação, infiltração, velocidade de passagem da água pelas bacias hidrográficas afetadas”.
Conforme o especialista, a consequência esperada é que o estado sofra com crises hídricas mais intensas em períodos mais curtos, com extremos mais intensos tanto para épocas de cheias, quanto para épocas de secas.
“A degradação contínua da cobertura vegetal, principalmente em relevos mais inclinados, tende a aumentar ainda a erosão dos solos mobilizando sedimentos para os rios tributários e para os grandes rios de Roraima, o que potencializará também estes períodos de cheias e de estiagem, e o resultado de médio e longo prazos vai ser percebido nos diversos rios, inclusive no rio Branco”, resume.
Roraima enfrenta uma severa estiagem, intensificada pelo El Niño, e o Rio Branco, seu principal abastecedor de água potável, chegou ao nível negativo de -0,39m, se aproximando do ponto mais baixo de sua história. Conforme a Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (Caer), a situação compromete em 30% o abastecimento da capital, Boa Vista, enquanto em Mucajaí o comprometimento do serviço já chega a 70%.
Em sua pesquisa de doutorado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Xaud analisou 50 parcelas em áreas de floresta em Roraima. De 1997 a 2010, ele monitorou a quantidade de incêndios e como eles modificavam áreas monitoradas, considerando cinco cenários: florestas não atingidas por fogo, atingidas uma vez com baixo impacto, atingidas uma vez com alto impacto, atingidas duas vezes e atingidas três vezes. Leia o trabalho aqui.
“Existe uma progressão da degradação quanto maior for a recorrência. Observei o aumento de determinadas espécies de plantas que ocorrem tipicamente em florestas secundárias, que não são comuns para florestas conservadas. À medida que há um incêndio, começa a haver alteração da biodiversidade e há maior ocorrência de indivíduos que são considerados de florestas perturbadas”, explica sobre as mudanças.
Ainda conforme Xaud, as espécies que ocupam os espaços após o fogo podem ser chamadas de pioneiras. Elas têm funções importantes na recuperação dos ecossistemas pois permitem que a vegetação original destas áreas, que depende de mais sombra e umidade, chamadas de espécies clímaxes, retornem aos poucos.
No entanto, quanto mais afetadas pelo fogo, mais as florestas se modificam, pois perdem biomassa e estatura, assim o sol direto e ventos adentram mais e deixam o local mais quente e mais seco, o que por sua vez, torna as áreas menos adequadas para as espécies que são comuns a ambientes úmidos e mais propício para as pioneiras, como a embaúba.
“Muda toda a biodiversidade, toda a composição da floresta. Espécies que eram típicas são substituídas por outras. A alta biodiversidade de florestas tropicais é simplificada, reduzida, passando a apresentar maior homogeneização de espécies em áreas muito impactadas com incêndios”, afirma Xaud.
O especialista explica que com todas essas mudanças, também é perdida a volumetria em madeira de espécies de maior valor econômico e ocorre grande emissão de carbono para a atmosfera. Além disso, a cada novo evento, a área se torna mais vulnerável a novos incêndios.
“Algumas espécies rasteiras invasoras, como capins, começam a tomar conta da parte rasteira sendo mais aptas a queimar, mais rápido e mais intensamente. Dessa forma, toda a floresta se torna progressivamente mais vulnerável ao fogo”, detalha.
Não só a vegetação é impactada, como a fauna também. De acordo com o pesquisador, outras pesquisas na Amazônia revelam que desde invertebrados a grandes mamíferos, todos são afetados de diferentes formas. De uma forma geral, quanto mais próximas ao topo da cadeia alimentar, mais prejudicadas pela situação é a espécie animal, com tendência a terem dificuldades para se alimentar e reproduzir.
Megaincêndios e fome na Terra Indígena Yanomami
Roraima acumula 3.973 focos de calor em 2024. O Estado é o líder nacional com acúmulo de 28.3% do total de focos de calor do país. Em fevereiro, houve recorde histórico de 2.057. Em março, já foram registrados 1.312 e em janeiro, 604.
A capital Boa Vista atingiu um nível de poluição do ar considerado perigoso neste domingo (24), conforme o monitor de qualidade do ar Gaia. O nível de partículas PM2,5 - um dos poluentes atmosféricos mais nocivos - chegou a 414. Conforme Xaud, é o pior índice já registrado na história de Boa Vista.
Segundo Ciro Campos, analista do Instituto Socioambiental (ISA) em Roraima, ainda é cedo para comparar a situação com o megaincêndio de 1998, que foi uma tragédia ambiental sem precedentes. No entanto, ele acredita que o problema ainda pode aumentar muito se a estiagem se prolongar durante o mês de abril.
"Do jeito que a vegetação está seca e os ventos estão fortes, se não chover logo, podemos novamente ter um cenário de desastre em Roraima", alerta.
Duas Florestas Nacionais (Flonas) no estado, Anauá e Roraima, estão sofrendo com megaincêndios, e o fogo também já se aproxima da Flona Parima. A Flona Roraima começou a queimar em 05 de fevereiro e em cerca de um mês o fogo atingiu 30 km de norte a sul e 13 km de leste a oeste. Enquanto a Flona Anauá iniciou incêndio em 04 de março e em cerca de uma semana teve 14 a 15 km de área queimada em orientação norte a sul.
“O que caracteriza um megaincêndio é uma série de coisas, como impacto econômico, impactos ambientais, dimensão em área dos incêndios, importância das áreas incendiadas e as populações que são atingidas. São vários fatores de análise para podermos dizer que estamos diante de megaincêndios. Eles têm danos que chegam a ser irreversíveis”, principalmente, se houver recorrência nos próximos anos, explica Xaud.
Hutukara Associação Yanomami denuncia impactos da seca na Terra Indígena Yanomami:
Na Terra Indígena Yanomami, uma das grandes frentes de incêndio começou em 09 de fevereiro próximo às áreas incendiadas na Flona Roraima e se expandiu rapidamente em todas as direções, chegando a atingir nos primeiros 30 dias cerca de 32 km de extensão na direção norte sul e cerca de 17 km na direção Leste-Oeste. As frentes de incêndio da Flona Roraima e da TI Yanomami desta região, acabaram se encontrando e continuam ativas até o momento.
Conforme o monitoramento de Xaud, outra importante área afetada na Terra Indígena Yanomami está na região da Missão Catrimani, que começou a queimar mais tarde, mas se mantém ativa ainda até o momento.
As associações Hutukara Yanomami (HAY) e Wanasseduume Ye’kwana (Seduume) enviaram um ofício sobre alerta de insegurança alimentar causada pelo fogo em três regiões às autoridades em 19 de março. Conforme o documento, os incêndios seguem destruindo roças e as poucas plantações que sobram acabam atacadas por pragas.
Duas regiões já haviam relatado problemas causados por fogo em fevereiro através do Sistema de Monitoramento da Terra Indígena Yanomami. Neste mês, moradores do Apiaú usaram a ferramenta para pedir cestas básicas, pois a perda das roças resultou em estado de escassez e fome na região.
Em Waikás, as comunidades tentaram deter o fogo sem sucesso e quatro roçados foram destruídos. As chamas também atingiram o plantio de cacau de três anos, que faz parte de um projeto de comercialização das amêndoas para produção do Chocolate Yanomami, resultando em prejuízo à economia da região.
A região da Missão Catrimani sofre com um dos quadros mais críticos: quase todos os roçados foram destruídos, mais duas casas foram queimadas em março e as plantações restantes sofrem ataques de lagartas.
Para Estêvão Benfica Senra, geógrafo e analista do ISA, o manejo de fogo para renovação de pastagem tem ligação direta com as chamas que atingem o território Yanomami. Ele afirma, ainda, que a ação humana com o fogo também é feita para expansão de pastagem nestas áreas.
“Existe uma maior concentração de focos de calor nas áreas dos assentamentos e na zona de transição floresta-lavrado, onde está o limite leste da Terra Indígena Yanomami. O Apiaú, por exemplo, está em uma área de expansão da fronteira agrícola, onde o fogo é utilizado para renovação da pastagem, limpeza do terreno e grilagem de terra”, diz.
Ele conta que a região já sofreu com incêndios diversas vezes e o fogo se repete todas as vezes em que o El Niño se manifesta. A situação empobrece a vegetação a cada nova queimada e fica mais suscetível a queimar de forma descontrolada durante as tentativas de limpeza.
“A ocupação de áreas de floresta para uso agropecuário, na borda da terra indígena, aumentou muito desde o megaincêndio de 1998, assim como aumentou o desmatamento e o uso do fogo para formação de roçados e pastagens. Este cenário de expansão desordenada da fronteira agrícola, aliado à uma seca extrema, criou as condições para o surgimento de incêndios ao longo de uma faixa de centenas de quilômetros, de controle difícil e consequências imprevisíveis”, complementa Ciro Campos.
O ISA apoia as organizações da Terra Indígena Yanomami com o monitoramento dos focos de calor e a qualificação de informações territoriais sobre os impactos dos incêndios nas comunidades, além de realizar doações de alimentos e materiais diversos (redes, roupas, panelas, ferramentas agrícolas, etc.) para as famílias afetadas nas regiões do Médio Catrimani e Apiaú.
Serra Grande e reflorestamento
Com uma distância aproximada de 60 km da capital Boa Vista, a Serra Grande é um dos principais pontos de ecoturismo de Roraima. Localizada no município do Cantá, esta serra tem 850m de altura e seu cenário mescla a floresta amazônica com o lavrado roraimense em áreas próximas. No entanto, a diversidade que encanta os turistas está ameaçada de profunda mudança em razão do fogo.
“A própria Serra Grande, não é a primeira vez que está incendiando, ela já incendiou outras partes e nesse histórico que vemos hoje, dela estar sendo incendiada em todos os lados de forma crescente, a mudança vai ser maior. Se temos áreas repetidamente incendiadas nas serras, que não foram mapeadas em detalhes, isso vai ter todos os impactos já mencionados na flora, na fauna e nas nascentes, além de eminente efeito de queda de árvores, que ficarão mais vulneráveis à erosão e desestruturação de encostas nos períodos de chuvas”, explica Xaud.
Conforme o pesquisador, a atual situação vai exigir forte mobilização em restauração florestal a fim de recuperar a complexidade vegetal da Serra Grande e das demais serras. “Isso é um ponto crucial. O fogo da forma que está hoje vai exigir das instituições um intenso programa para restauração destas áreas de forma acelerada, senão elas não vão conseguir se recuperar”.
Rede de Sementes em Roraima
O ISA implementou a iniciativa da Rede de Sementes em Roraima neste ano. O objetivo do projeto é coletar vários tipos de sementes nativas, fazer uma muvuca (mistura das sementes) e promover a restauração ecológica em áreas degradadas.
Segundo Emerson da Silva Cadete, biólogo e técnico responsável pela Rede de Sementes no estado, os povos da Terra Indígena Serra da Lua devem ser os primeiros parceiros para as coletas. Inicialmente, a muvuca será usada para reflorestar áreas indicadas pelos próprios indígenas no território.
“Estamos em um processo de ajuda às comunidades que participam deste processo por conta das queimadas. Se queimar toda a floresta não tem sementes e se não tem sementes, não tem restauração”, afirma Cadete.
Para apoiar comunidades indígenas da Região Serra da Lua no combate aos incêndios florestais e à seca, o ISA faz doações de alimentos, combustível e ferramentas (bombas costais, terçados, luvas, óculos de proteção, perneiras entre outros).
Os próximos passos da Rede de Sementes em Roraima envolvem o diálogo com governos federal e estadual, prefeituras, agricultores e fazendeiros para a restauração ecológica em outras áreas afetadas pelo fogo, como a Serra Grande, ou que tenham sofrido com outro tipo de degradação no Estado.
“Vamos buscar compradores, que podem ser pessoas do governo para atingir o objetivo de restaurar áreas de proteção e reservas legais. Também faremos isso com donos de lotes, produtores rurais e donos de fazenda, pois são obrigados por lei a restaurarem se ultrapassarem áreas de reserva legal.
Cadete explica que o diferencial da Rede de Sementes para outras formas de restauração é a simplificação do processo, pois existe menor demanda de trabalho, como a preparação do solo, mas a dispersão de sementes é mais fácil. Além disso, o projeto gera renda para as comunidades de coletores que vendem as sementes para outros atores que necessitam fazer a restauração.
Para Xaud, aliar todas as instituições e seu conhecimento sobre os impactos dos incêndios florestais em Roraima, bem como sua prevenção e controle, em articulação com as ações de redes de sementes e programas de restauração florestal, será de suma importância para todas as dimensões de ações de conservação e desenvolvimento do estado de Roraima, uma vez que em todas as atividades produtivas e de qualidade de vida das populações, os recursos naturais e, em especial a água, só se manterão disponíveis nos atuais níveis tanto no meio ambiente e quanto para nosso uso, caso haja efetivo controle destes grandes desastres ambientais, cada vez mais intensos e frequentes.